O Abutre
Por
Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/
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O ser humano sempre prezou muito
o espaço social reservado à transmissão das explicações acerca de suas
experiências compartilhadas no mundo. Seja via mitos, parábolas ou pesquisas
científicas, tais textos explicativos, além de preservarem as tramas e
urdiduras sócio culturais, promovem certo conforto diante do desamparo
existencial que a condição humana comporta e podem abrir campo para
criatividade, mas, para isso, precisa abrir campo, também, para a reflexão. Ao contarmos histórias, resgatarmos memórias ou descrevermos
descobertas empíricas, damos contorno às nossas percepções e sentimentos e criamos
códigos para possibilitar o que chamamos de troca de experiências e impressões.
É assim, que vamos atribuindo sentido à vida e suavizamos o peso da existência.
Inicialmente, tais trocas aconteciam unicamente através da oralidade, mas, aos
poucos, os documentos escritos (e, posteriormente, os documentos com imagens
gravadas) foram ganhando espaço e maquinário de produção e armazenamento. Foi
nesse processo, também, que uma cisão entre narrativas e informações foi se
estabelecendo, tendo esta última status de verdade, numa espécie de apreensão
precisa da realidade. Contudo, o mundo lá fora só pode ser apreendido através
de registros subjetivos que decodificam o que chega de acordo com uma série de
possibilidades e impossibilidades determinadas pela complexidade de seres que
não podem se desvencilhar de sua história, relações sociais ou de seu
inconsciente para falar sobre qualquer coisa. Nesse sentido, a ideia de
neutralidade nos leva apenas à ilusão de que podemos, sim, conhecer a verdade
verdadeira, única e inquestionável. É dessa ilusão que se alimenta o poder da
mídia, nos dias atuais: o poder de conhecer a verdade através de suas
investigações supostamente isentas de qualquer outro interesse a não ser o de
informar o cidadão sobre o mundo que lhe cerca. Um mundo perigoso, no qual
relatos selvagens são possíveis a qualquer momento, nos leva à paralisia do
medo e congela nosso discernimento, ou melhor, nosso pensamento. Mas, não são
quaisquer relatos selvagens divulgados como verdade em nosso mundo, são relatos
que dividem o mundo em dois, uma divisão maniqueísta que deixa muito claro de
quem e do que devemos ter medo e nos proteger. Uma divisão que nos deixa com a
sensação maior de controle em relação à nossa vida e à nossa história. Contudo,
o que, supostamente, nos tiraria do desamparo, acaba por nos tirar o chão do
senso crítico e da possibilidade de pensar. Sem solo firme do pensamento e do
senso crítico, ficamos ainda mais desamparados e entregues às narrativas
passadas como verdades. Nas quais, num ciclo vicioso, nos agarramos procurando
controle que nos ofereça base de sustentação diante do desamparo.
Não é, diretamente, sobre essa
nossa vulnerabilidade que trata o filme Abutre (Dan Gilroy, 2014). Mas, é ela
que sustenta tudo o que ali acontece. Louis Bloom (personagem de Jake Gyllenhaal),
desde a primeira cena do filme apresenta uma especial inclinação para
contravenções, frieza no trato com suas eventuais consequências e um distanciamento
emocional nas relações que estabelece. Essas características passam a ser
vantajosas no ambiente da imprensa sensacionalista, que permite que Bloom
chegue a limites assustadoramente sombrios. Um filme que, inevitavelmente, nos
faz pensar sobre o poder que oferecemos a outrem, quando legitimamos seu lugar de
portador da verdade absoluta. Mais que isso, nos faz pensar a quem oferecemos
tal poder, ou seja, quem se fortalece com ele e, por fim, como só nos tornamos
mais vulneráveis ao não aceitarmos tal aspecto da condição humana. E como
pensar é sempre o melhor remédio, sem dúvida, é um filme a ser encarado!