domingo, 4 de janeiro de 2015

O Abutre



O Abutre
                     Por Ana Lucia Gondim Bastos

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O ser humano sempre prezou muito o espaço social reservado à transmissão das explicações acerca de suas experiências compartilhadas no mundo. Seja via mitos, parábolas ou pesquisas científicas, tais textos explicativos, além de preservarem as tramas e urdiduras sócio culturais, promovem certo conforto diante do desamparo existencial que a condição humana comporta e podem abrir campo para criatividade, mas, para isso, precisa abrir campo, também, para a reflexão. Ao contarmos histórias, resgatarmos memórias ou descrevermos descobertas empíricas, damos contorno às nossas percepções e sentimentos e criamos códigos para possibilitar o que chamamos de troca de experiências e impressões. É assim, que vamos atribuindo sentido à vida e suavizamos o peso da existência. Inicialmente, tais trocas aconteciam unicamente através da oralidade, mas, aos poucos, os documentos escritos (e, posteriormente, os documentos com imagens gravadas) foram ganhando espaço e maquinário de produção e armazenamento. Foi nesse processo, também, que uma cisão entre narrativas e informações foi se estabelecendo, tendo esta última status de verdade, numa espécie de apreensão precisa da realidade. Contudo, o mundo lá fora só pode ser apreendido através de registros subjetivos que decodificam o que chega de acordo com uma série de possibilidades e impossibilidades determinadas pela complexidade de seres que não podem se desvencilhar de sua história, relações sociais ou de seu inconsciente para falar sobre qualquer coisa. Nesse sentido, a ideia de neutralidade nos leva apenas à ilusão de que podemos, sim, conhecer a verdade verdadeira, única e inquestionável. É dessa ilusão que se alimenta o poder da mídia, nos dias atuais: o poder de conhecer a verdade através de suas investigações supostamente isentas de qualquer outro interesse a não ser o de informar o cidadão sobre o mundo que lhe cerca. Um mundo perigoso, no qual relatos selvagens são possíveis a qualquer momento, nos leva à paralisia do medo e congela nosso discernimento, ou melhor, nosso pensamento. Mas, não são quaisquer relatos selvagens divulgados como verdade em nosso mundo, são relatos que dividem o mundo em dois, uma divisão maniqueísta que deixa muito claro de quem e  do que devemos ter medo e nos proteger. Uma divisão que nos deixa com a sensação maior de controle em relação à nossa vida e à nossa história. Contudo, o que, supostamente, nos tiraria do desamparo, acaba por nos tirar o chão do senso crítico e da possibilidade de pensar. Sem solo firme do pensamento e do senso crítico, ficamos ainda mais desamparados e entregues às narrativas passadas como verdades. Nas quais, num ciclo vicioso, nos agarramos procurando controle que nos ofereça base de sustentação diante do desamparo.
Não é, diretamente, sobre essa nossa vulnerabilidade que trata o filme Abutre (Dan Gilroy, 2014). Mas, é ela que sustenta tudo o que ali acontece. Louis Bloom (personagem de Jake Gyllenhaal), desde a primeira cena do filme apresenta uma especial inclinação para contravenções, frieza no trato com suas eventuais consequências e um distanciamento emocional nas relações que estabelece. Essas características passam a ser vantajosas no ambiente da imprensa sensacionalista, que permite que Bloom chegue a limites assustadoramente  sombrios. Um filme que, inevitavelmente, nos faz pensar sobre o poder que oferecemos a outrem, quando legitimamos seu lugar de portador da verdade absoluta. Mais que isso, nos faz pensar a quem oferecemos tal poder, ou seja, quem se fortalece com ele e, por fim, como só nos tornamos mais vulneráveis ao não aceitarmos tal aspecto da condição humana. E como pensar é sempre o melhor remédio, sem dúvida, é um filme a ser encarado!