sexta-feira, 22 de maio de 2015

Novo endereço

Estamos de mudança. Há tempos eu estava a procurar uma forma de organizar meus textos de uma forma mais fácil de encontrá-los e mais gostosa de explorá-los. Foi aí que veio a ideia da mudança e, aos poucos, os textos escritos até aqui e mais os que ainda virão a ser escritos vão morar todos juntos no

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Espero que a mudança favoreça, ainda mais, as trocas e diálogos para os quais o Tecendo a Trama vem abrindo espaço!

sábado, 9 de maio de 2015

O encontro de Israel Galván e Akram Khan em “Torobaka”: Se perder e se achar, parte II


O encontro de Israel Galván e Akram Khan em “Torobaka”: Se perder e se achar, parte II
                                                            Por Ana Lucia Gondim Bastos
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O documentário de Win Wenders sobre Pina Bausch (2011), traz um imperativo da coreógrafa e bailarina alemã: “Dance, dance, otherwise we ere lost” (Dance, dance, senão estamos perdidos). Um imperativo que, de cara, tendo a defender. A dança integra, de modo muito particular e privilegiado, o que corpo e alma têm a dizer, integra o que é da ordem do suor  ao que é da ordem da lágrima, integra o peso do corpo com o das angústias existenciais, assim como a leveza dos movimentos  ao prazer da expressão subjetiva. Como só podemos acontecer no mundo a partir dessa integração, quem não encontra formas de perceber e se colocar nessa pulsação do mundo, está perdido. Perdido de quem? Me perguntava, então. E a resposta imediata era: perdido de si próprio.
Contudo, essa reflexão ganhou outra complexidade depois de assistir ao genial “Torobaka” de Israel Galván e Akram Khan, no Auditório do Ibirapuera, durante o Festival “O Boticário na Dança”(2015). Dois bailarinos e coreógrafos, com fama internacional, se juntam para idealizar um espetáculo. Falam línguas diferentes, inclusive as corporais - um é espanhol e dança flamenco, o outro inglês, de família de Bengali, e dança kathak. São reconhecidos pela capacidade de criar o novo e desafiar o convencional, sem perder suas raízes, partes delas, talvez compartilhadas, ainda que remotamente: Akran é de tradição indiana e Israel traz com o flamenco a tradição cigana, que, segundo consta, iniciou sua peregrinação mundo afora partindo da Índia. A primeira tem a vaca como animal sagrado, assim como o touro, na tradição flamenca, tem valor simbólico central. Daí o nome do espetáculo “Torobaka”, daí o ponto de partida para apresentar, um para o outro, seus movimentos e intencionalidades. Perceberam que jamais teriam a fluência necessária para expressar conteúdos mais profundos de suas experiências, na nova dança apresentada (coisa que, diga-se de passagem, também, acontece muito no quando das aquisições de novas línguas), mas seguiram o diálogo e, no fim, Akran continuou com seus pés descalços e com guizos nos tornozelos e Israel com seus sapatos de sapateado flamenco. Convidaram músicos de várias partes do mundo (belga, basco, austríaco etc.) e foram dançando, ora num diálogo que apresenta uma mesma sintonia, ora numa espécie de duelo, deixando muito evidente aproximações e distanciamentos, com os quais tecem o tecido do espetáculo. Lindo e tocante! Isso sem falar que, no caso da apresentação ter acontecido num auditório cujo fundo do palco se abre, como uma janela, para um parque e para uma larga e movimentada avenida que tangencia tal parque, e, em determinado momento, já no final do espetáculo - quando já estávamos completamente tomados pelo o que estava acontecendo no palco com pouca luz  e cor, ao mesmo tempo que muito som e movimento - a janela começou a se abrir e o vento frio do outono entrou junto com a paisagem “lá de fora”. Mais integração das ambivalências das experiências humanas, ali compactadas e entregues como um presente à plateia absorta. E, então, acaba o espetáculo e o imperativo de Pina me volta à cabeça de forma diferente: “Dance, Dance, senão estamos perdidos”, não só de nós mesmo, mas uns dos outros, também!

sábado, 2 de maio de 2015

Quando Meus Pais não estão em casa: bom filme para se assistir no dia do trabalho


Quando Meus Pais não estão em casa: bom filme para se assistir no dia do trabalho
                                            (para Ilza, pela parceria)
Por Ana Lucia Gondim Bastos
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A participação da babá na formação de uma criança é, quase sempre, bem menosprezada. Aliás, mais frequente é a desconfiança em relação aos bons hábitos e bons tratos que elas (sim, quase sempre mulheres) possam vir a oferecer às crianças pelas quais se responsabilizarão quando os pais não estão em casa. Geralmente as justificativas de tal descrédito se apoiam em histórias particulares de maus tratos infantis, descobertos posteriormente. Contudo, acredito que o peso maior resida em nossas tradições escravocratas, que fazem com que deleguemos  os cuidados para com quem/ o que nos é mais caro e íntimo (nossa casa, nossos filhos etc.) a pessoas as quais desconsideramos o valor, por (ou para) nos sentirmos superiores. Mas, o fato é que, mesmo depois que as sinhás passaram a amamentar seus próprios filhos, temos gerações de crianças embaladas por babás que, muitas vezes, trazem novas e importantes referencias para toda a família,  para quem trabalha. Hoje, já não mais “mães pretas”, e cada vez com mais direitos e deveres bem estabelecidos, como qualquer outro profissional, as babás participam da educação das crianças de forma cuja relevância é difícil questionar.
O filme Singapurense de Anthony Chen (2015), fala disso de modo muito delicado. Conta a história de uma família de classe média, com um filho de dez anos e outro a caminho, que resolve contratar uma filipina para ser empregada doméstica e cuidar do  irascível Lim, quando os pais não estão em casa. Em meio a tensões de quem vive em um país em crise econômica, trabalhos exigentes e à espera por mais um filho, o casal pouco se comunica, fato agravado pela necessidade de estarem sempre tendo que se haver com problemas e reclamações provenientes de comportamentos de Lim. A criança é porta voz desse estado explosivo que a família tenta conter, mas, claro, difícil perceber: ele parece, apenas, uma típica “criança problema”. Num primeiro momento, como era de se esperar, a babá é mais um alvo da agressividade de Lim, mais uma representante de um mundo que parece não lhe caber e, ainda por cima, representante que precisa dormir no seu quarto, tomar seus espaços. Mas, é com a presença dela que Lim começa a ter quem o acompanhe mais de perto, conheça seu cotidiano, suas dificuldades e conquistas. Terry, a filipina, entra na família, abrindo uma janela, desnaturalizando seu modus vivendi. Por exemplo, em determinado momento Lim pergunta sobre o seu filho que ficou nas Filipinas e se surpreende ao saber que Terry havia deixado um bebê, para ir trabalhar em Singapura. Ela, então, pergunta o que faz a mãe de Lim ao contratar uma estranha para cuidar dele enquanto sai para trabalhar. Lim fica pensativo e vai valorizando e respeitando cada vez mais a presença e o trabalho de Terry. Vai, também, mudando de atitude, como acontece com todos aqueles que se dispõem a pensar. Assim, aos poucos, Terry vai aparecendo no filme como uma pessoa inteira, cheia de sonhos, dores, preocupações e histórias. Vai saindo do lugar da invisibilidade social, da “sombra” que acompanha a criança. Sai da condição de um ser sem rosto e sem voz, alguém que se pode negar a existência, quando assim parece oportuno aos patrões. Isso não só para Lim, mas para seus pais, também.
Acho uma reflexão importante, pensarmos sobre o lugar da empregada doméstica na família para a qual trabalha e, em particular, o da babá. Trabalhadores – ainda em sua esmagadora maioria mulheres - tão importantes, que agregam sentidos e influenciam na cultura familiar (através dos temperos, das músicas ou das conversas acerca de suas realidades tão díspares às dos seus patrões), são, tantas vezes, menosprezados. Pessoas que precisam ser empoderadas, não só para se sentirem tão merecedoras de direitos humanos e, portanto também os trabalhistas, como qualquer um, mas, principalmente, para (re)conhecer o valor do seu trabalho e poder fazê-lo com brilho no olho. Aquele brilho que só tem quem confia que tem um fazer transformador de realidades. Com certeza, todos saíram ganhando com isso!

quarta-feira, 22 de abril de 2015

O Sal da Terra


O Sal da Terra
Por Ana Lucia Gondim Bastos
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Depois de assistir ao documentário “O Sal da Terra”, com a inevitável lembrança de “Pina” (outro belíssimo documentário dirigido por Win Wenders, 2011), fico com a forte convicção de que “Asas do Desejo” (http://analuciagbastos.blogspot.com.br/2015/03/asas-do-desejo.html ) só pode ser um filme autobiográfico!
Win Wenders deve ser um anjo que depois de muito sobrevoar a Terra e conhecer a intimidade das angústias e desassossegos humanos, caiu do céu, perdeu sua amadura celeste e veio conosco viver, para olhar pro mundo com as cores que só gente, bem gente, pode enxergar! Encantado com o que pôde começar a ver e a sentir, resolveu ser diretor de cinema e, depois de nos contar sobre seu segredo de forma tão explícita que mal pudemos acreditar, começou a escolher pessoas, cujas obras, poderiam nos fazer entender melhor o que a passagem bíblica “vós sois o sal da Terra e a luz do mundo” poderia significar e nos mostrar como, tal passagem, sugere uma transformação individual, que só poder ser vivida no coletivo.
Incrível, assistir ao “Sal da Terra” foi, para mim, uma experiência quase religiosa ao mesmo tempo que tudo que tem ali - imagens, gestos, texto - tudo é tão nosso, tão, dolorosamente, mundano! Aliás, todo o filme, em seus múltiplos aspectos, nos leva a perceber coexistências que, nem sempre, apesar de assim nos parecer, se traduzem em antagonismos. Ao contrário, podem ser entendidas como continuidades (tal como numa fita de Moebius, o dentro e o fora se apresentam de forma contínua). Sebastião Salgado é brasileiro, bem brasileiro! Mas, para além (ou aquém) de qualquer coisa, é um fotografo que retrata, com a mesma sensibilidade, histórias de qualquer lugar do mundo. Sim, a linguagem dele é universal, assim como sua preocupação, fica claro, é com o ser humano de forma abrangente; com tudo  o que a vida comporta de dores, de guerra, de desamparo, seja onde for. Da mesma forma, cada retrato é uma história individual congelada numa fração de segundo e, a expressão de cada um que se oferece ao registro, é a de quem encontrou um olhar atento à sua dor e à sua história, como única e irrepetível. Por outro lado, Sebastião vai atrás de histórias contadas por povos, por culturas e se intitula, em certo momento, um fotografo social. Outra dicotomia encontra-se entre o homem e a paisagem natural, ou entre o homem e as outras formas de vida no planeta. O fotografo social não perde sua identidade como tal ao olhar pro mundo em sua dimensão físico- geográfica, conta-nos e  nos convence, poeticamente, que fazemos parte de tudo isso e que temos tempo para cuidar do que destruímos, reparar para continuarmos existindo, e ainda, quem sabe, mais integrados, mais solidários e menos solitários. 

sábado, 18 de abril de 2015

Fale mais sobre isso...


Fale mais sobre isso...
Por Ana Lucia Gondim Bastos
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Fale mais sobre isso... por que nunca está tudo resolvido, por que sempre existe o desejo de mudança, por que sempre bate forte a esperança ou por que lidar com tudo isso é sempre muito difícil? Fale mais sobre isso...
Escolher como profissão ouvir o que o outro tem a dizer sobre os “issos” de sua existência, implica ter que perceber os ecos disso, em sua própria história. Implica em acreditar na capacidade humana de transformar realidades e na força dos encontros humanos. Flavia Garrava Borges, sabe bem como é, formou-se em psicologia antes de “se lançar no imponderável”, como atriz. É assim que ela  descreve a entrada do terapeuta no universo de um paciente: um laçar-se no imponderável e é assim, também, imagino, que deva acontecer com um ator em relação ao universo de seus personagens. Então, a atriz/ psicóloga resolveu integrar as duas experiências e escrever um monólogo cômico sobre o tal imponderável. “O humor é um dom precioso e raro”, escreveu Freud em 1927, uma forma de olhar para as incertezas e para o desamparo com uma leveza possível. Foi através desse fio de leveza que Flavia optou nos conduzir pelo cotidiano de Laura, terapeuta de 40 anos, casada e mãe de um menino de 8 anos. Uma personagem que escolheu passar a vida com a incompletude e a vulnerabilidade, inerentes à condição humana, às claras. Seus cabelos, movimentos e fluxo de pensamento vão ficando progressivamente mais soltos, no decorrer do texto, evidenciando uma, também progressiva, entrega e aceitação de tal condição. Se o “Humor é Coisa Séria”, como diz Abrão Slavutzky  (2014), sua graça “tem o poder de abrir portas e corações, excita a vida e, se não salva, pode aliviar”, e é assim que saímos de “fale mais sobre isso...”, se não curados dos dissabores, capazes de dar boas risadas apesar deles ou por conta deles, mesmo!
 

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Cinderella


Cinderella
(para Flora, tão pequena e já com tanta atitude e coragem)
Por Ana Lucia Gondim Bastos
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Apesar de estar longe de propor uma nova versão para o conto de fadas, transformado em animação, pelos Estúdios Disney, em 1950, o recém lançado longa metragem Cinderella, dirigido por Kenneth Branagh, traz elementos dignos de nota. A narrativa linear e sem surpresas, faz com que os bem pequenos consigam acompanhar, sem maiores dificuldades, o filme que traz cores e texturas que se apresentam como um convite a entrar num livro de contos encantados, daquelas edições especiais que, ainda hoje, enchem os olhos das crianças, nas prateleiras das livrarias ou nas mãos do adulto à beira da cama, na hora de dormir. Mas, não é exatamente, esse clima de magia, tampouco a narrativa linear, que faz com que o filme se apresente como uma opção interessante para um dia no cinema em companhia mirim.
 A história da Cinderella, começa com ela ainda bebê, crescendo numa família que tinha em seu cotidiano a valorização do olhar que se abre para a possibilidade de projetar novas realidades no mundo, percebendo-o de forma dinâmica e com encantamento e magia. Antes de morrer, sua mãe, deixa como herança o ensinamento de que o principal na vida é ter coragem e gentileza. Sim, Cinderella não se daria bem e encontraria a felicidade por ser bela e obediente, mas pelo cultivo da coragem e da gentileza, o que faz muita diferença! Assim, quando entram em cena a madrasta má (papel da excelente Cate Blanchett) e suas filhas Anastasia e Drisella, Cinderella não as recebe com subserviência e é invejada pela beleza, o que está em jogo, na relação desta Cinderella com os novos personagens de sua história, é a gentileza e a coragem de enfrentar “a barra da vida”. Anastasia e Driesella são tão bonitas ou inteligentes quanto Ciderella, o que lhes falta é atitude diante da vida e de seus projetos. Essa é a diferença entre elas. Enquanto as duas primeiras esperam que seus desejos se realizem por serem especiais, a última procura manter a crença nas relações com o mundo baseadas na generosidade e na força transformadora de realidades. Numa das vezes que sai galopando pela floresta, afim de se afastar um pouco do clima de animosidade de sua casa, após a morte de seu pai, Cinderella conhece um rapaz que acompanhava um grupo de caça e, com ele, trava um diálogo no qual questiona os porquês de fazermos as coisas como sempre foram, simplesmente, por repetição acrítica. O rapaz, em questão, que passaria a povoar sonhos e devaneios de Cinderella, tratava-se do príncipe herdeiro, mas ela desconhecia o fato. O príncipe, por outro lado, também encantou-se com a moça, novamente, menos pela beleza e mais pela forma como ela se colocou na conversa que travaram, fazendo com que o fizesse, inclusive, passar a discutir as regras reais através das quais só poderia se casar com uma princesa. Queria escolher alguém como sua companheira, alguém que o fizesse se sentir como se sentiu com aquela moça,  que o motivou a questionar os porque do “sempre assim” da vida. No final, o príncipe propõe um baile para todo o reino, na esperança de rever a moça com a qual se encantou. A madrasta e as irmãs rasgam o vestido que Cinderella arrumara para ir ao baile, é quando entra em cena a fada madrinha (outra atuação muito  boa de Helena Bonhan Carter) que transforma uma abobora em carruagem e ratos em cavalos e todo o “Bibidi-Bobidi-Boo”, velho nosso conhecido, até o tão aguardado reencontro do casal, separado pelas doze badaladas.
 Portanto, não podemos dizer que o novo filme da Cinderella é um grande marco para o cinema voltado ao público  infantil, mas, as mudanças sutis que traz no enredo, nos faz sair do cinema com menos receio de que, através das histórias que apresentamos para nossas meninas, estejamos a construir prisões em forma de castelos e  alternativas de caminho para o feminino sempre como sapatinhos de cristais: apenas encantadores pela beleza e fragilidade.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Mais Estranho que a Ficção


Mais Estranho que a Ficção
Por Ana Lucia Gondim Bastos
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O que seria mais estranho que a ficção, senão a vida real? É o que nos perguntamos ao recebemos, como justificativa da queda de um Airbus que levava 150 pessoas, o suicídio do copiloto que antes de chocar deliberadamente o avião à montanha, trancou o piloto para fora da cabine de comando da aeronave. Isso tudo, meses depois de assistirmos, surpresos com a criatividade do roteiro, cena semelhante, numa das histórias do super comentado “Relatos Selvagens” de Damián Szifron  (2014). Desde que o relato selvagem mais inusitado do filme passou às primeiras páginas dos jornais de todo o mundo, não paramos de ouvir estratégias preventivas para esse tipo de acidente, assim como estatísticas a serviço de acalmar os corações angustiados dos que, mesmo antes do anúncio dessa tragédia, já não se sentiam à vontade em momentos nos quais o controle da situação estaria nas mãos de outrem. Mas, aí vem novo questionamento: quando temos, em nossas mãos, o controle da situação? Ou melhor, em algum momento temos tal controle?  O bem humorado filme  “Mais Estranho que a Ficção” de Marc Foster (2006), nos permite mergulhar em tais questões de maneira leve e divertida. E melhor ainda, nos oferece saída: aproveitar a vida com a intensidade e a tranquilidade daqueles para os quais nada mais resta, já que o controle absoluto não se tem, mesmo. Contudo, cientes de que alguns detalhes, que a vida comporta, sempre estarão ao alcance de nossas escolhas: como por exemplo trocar ideias e carinho com pessoas queridas ou satisfazer os sentidos com delícias que viram poesia ao serem degustadas, ouvidas, tocadas, olhadas ou cheiradas. Mas aí, vem outro questionamento, ainda: sem o controle, estaremos condenados à deriva?
No filme o protagonista, Harold Crick (papel de Will Ferrell), tem seu monotônico e repetitivo cotidiano de fiscal da receita federal alterado quando começa a ouvir uma voz feminina que narra e interpreta suas ações. Depois de procurar profissionais da saúde que só conseguem pensar em ajuda-lo dentro das possibilidades diagnosticas da psicopatologia, Harold busca a ajuda de um professor de literatura (papel do brilhante Dustin Hoffman), já que chegara à conclusão de que seria um personagem literário. O professor, sugere, então, que seu novo pupilo busque dicas, no seu dia a dia, se estaria vivendo numa comédia ou numa tragédia. Se estivesse numa comédia, se casaria e, no caso de estar vivendo uma tragédia, a morte seria iminente. Com tudo isso acontecendo na vida do pacato fiscal, não é difícil supor que a desorganização e a paixão passem a ter lugar de expressão. A partir daí o filme passa a ser uma discussão sobre possibilidades de se mudar narrativas, já que nosso herói se percebe numa tragédia, no mesmo momento no qual , mais do que nunca, quer viver para experimentar o que o amor pode lhe oferecer. Para isso, vai longe nas investigações acerca de quem tem poder sobre sua história e acaba conseguindo um cara-a-cara com sua criadora (papel, também digno de nota, de Ema Thompson). O encontro traz transformações profundas para o sentido que ambos vinham (ou não) construindo vida afora. Num roteiro engenhoso de Zach Helm , chegamos, junto com Harold, à dura conclusão de que nossas histórias não são tão livres, contam com várias condicionantes (sociais, culturais, psíquicas, biológicas etc.), mas que essas não são determinantes de nossas narrativas, pois podemos, não sem dor ou dificuldade, dialogar com elas para buscar novos rumos. Mas, isso está longe de significar o controle, mesmo quando estamos na cabine de comando... Então, carpe diem! 

domingo, 29 de março de 2015

Os Famintos ou Você tem fome de que – Parte II


Os Famintos ou Você tem fome de que – Parte II
Por Ana Lucia Gondim Bastos
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Comer com os olhos e com receios mil. Receio de engordar, de se intoxicar ou de se viciar e perder a linha? Por que vivemos famintos num mundo de excessos e de ofertas sempre muito sedutoras? É o que nos faz perguntar o premiado curta-metragem “Os Famintos” , com Biá Napolitani (que também assina o roteiro) e Diego Becker, dirigido por Ana Claudia Bastos (2008). No filme, as palavras não saem tanto quanto a comida não entra. O filme mudo trata de (in) satisfações e (im) possibilidades de se relacionar com o mundo e com o que ele pode nos oferecer seja para nos nutrir, seja como fonte de prazer. A atmosfera do filme nos remete a outrora, por um lado,  e o conteúdo, por outro, ao nosso universo de relações e satisfações virtuais, cuja sensação de controle é maior que qualquer outra e onde o prazer parece ali residir, principalmente. O filme dura poucos minutos, mas, os questionamentos que suscita, talvez a vida inteira.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Ana e os Lobos: sobre o limite do nosso poder transformador


Ana e os Lobos: sobre o limite do nosso poder transformador
Por Ana Lucia Gondim Bastos
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Mais em uns casos do que nos outros, contudo de forma nenhuma incomum, é a vontade de transformar o outro, vontade de abrir espaço para mudar um jeito de pensar, um ponto de vista ou uma forma de se relacionar do outro com o mundo,  que consideremos pouco produtiva ou danosa para o contexto individual ou coletivo. À vezes é uma vontade  fruto de genuína preocupação com o outro e/ou com o mundo que compartilhamos com ele, às vezes, não. Muitas vezes vem de uma reflexão crítica e de um mapeamento histórico sobre os porquês daquela conformação de pensamento e atitude, outras vezes, não. Muitas vezes, ainda, tais tentativas, geram embates, de fato, transformadores para ambos os lados. Contudo, também muitas vezes, geram intolerância e destruição. A grande diferença nos resultados das empreitadas por abrir novas janelas para o outro, não reside apenas, ou principalmente, na intencionalidade ou forma como tais tentativas acontecem. Reside, muito mais, na medida da disponibilidade desse outro para mudança, ou pelo menos, para pensar sobre elas. Então, reside na demanda de mudança proveniente de incômodo com seu modus operandi, incômodo que precisa ser suficiente para promover movimentos na direção do novo. Sem tais condições, as tentativas de transformar a ordem (ou a desordem) de outrem serão, na melhor das hipóteses, estéreis.
Em 1972, a personagem de Geraldine Chaplin, no clássico “Ana e os Lobos”, do genial Carlos Saura, já nos fazia pensar sobre isso tudo. Ela, uma jovem inglesa, chega a uma mansão de campo na Espanha para cuidar das 3 crianças que ali viviam, junto com seus pais, tios, a avó e muitos empregados. A dinâmica da casa gira em torno da matriarca controladora e mimada que passa os dias a demandar mil coisas, a ser carregada de um lado pra outro e a reclamar sobre como nada é mais como antigamente. De tempos em tempos, tem crises nervosas que a faz se debater no chão, momento de todos correrem para a acudir. Os filhos são três: um místico que vive buscando a renúncia das satisfações do corpo, um colecionador de armas e uniformes militares a quem é atribuído o poder de manter a ordem e o pai das crianças, o único casado, que tem o sexo como interesse central de sua vida. Através da relação, inicialmente de fascínio e interesse, que cada um começa a estabelecer com Ana, vai se revelando o caráter perigoso e mórbido da repetição, no universo asfixiante de uma realidade sem brecha para que ar fresco possa entrar. Fatos estranhos começam a ocorrer, proveniente das três facetas representadas pelos irmãos e, surpresa, Ana vai percebendo que todos sabem a quem atribuir a responsabilidade por tais ocorridos, percebe, também, que nada os espanta. Quanto mais vai entendendo a dinâmica da casa, mais a moça vai se aproximando de cada um integrantes e de suas manias. Nesse processo, vai buscando acesso ao universo particular de cada integrante da casa e, em determinado momento, parece imaginar ter conseguido entrada. Mas, ali, quando a mãe reclama do mal funcionamento das coisas na atualidade, está apenas ressentida por ter perdido o controle, ainda maior, que já teve. Ana, fica claro, teria sido contratada para ser mais uma a manter a ordem das coisas e não para altera-la. Talvez, ela venha a perceber isso tudo, tarde demais e o final dessas histórias, nesses casos, são sempre tristes. Mas, a arte está aí, também, para nos permitir a reflexão acerca das nossas escolhas cotidianas. Sem dúvida, onde e em que investir nossa força criativa merece, sempre,  o foco de tais reflexões.

sexta-feira, 13 de março de 2015

A estranha mania: onde Blade Runner encontrou Her


A estranha mania: onde Blade Runner encontrou Her
                                  Por Ana Lucia Gondim Bastos 
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Quando, em 2014, assisti ao filme "Her" (Spike Jonze, 2013), então o  ganhador do Oscar de melhor roteiro, me ative nas reflexões acerca dos facilitadores  de investimentos narcísicos, apresentados pelo universo da virtualidade. No filme de ficção científica, passado num futuro próximo, o personagem interpretado por Joaquim Phoenix se apaixona por um novo sistema operacional inteligente, instalado em seu computador. O sistema, para o qual foi selecionada uma voz feminina (a voz de Scarlett Johansson), passa a fazer parte da vida do protagonista, de forma tão intensa e satisfatória, que vai restringindo as relações do personagem com o resto do mundo, ou melhor, vai transformando tais relações, já que essas passam a ter mais sentido pela presença constante, e ao alcance das mãos, da doce voz de Scarlett, sempre com boas e oportunas ideias (até porque sempre adequadas aos gostos e interesses de seu usuário).
Reflexões semelhantes me ocorreram quando assisti ao filme "Blade Runner" (Ridley Scott, 1982), há anos atrás, época na qual 2019 me parecia um futuro bem distante. O Caçador de androide, interpretado por Harrison Ford, era o retrato da solidão e da dificuldade da troca de experiências significativas, num mundo de relações sociais esgarçadas, relações de poder marcadas por um colapso ético e definidas em função de interesses meramente mercadológicos.  Mundo no qual replicas perfeitas de humanos e animais são construídas para servir a parcela privilegiada de humanos que vão se aventurar em colônias extraterrestres, já que o planeta Terra já se configura um grande rastro de destruição e decadência civilizatória.
Talvez por ter tais futuros (o desenhado por Jonze e o por Scott) tão próximos - na verdade, colados ao presente - talvez pela necessidade de abrir espaço para criatividade e para a esperança nesses tempos, quem sabe pela necessidade de continuar acreditando que todas as lutas, travadas no passado, por um futuro melhor não foram em vão ou, ainda, por todas as alternativas anteriores, me peguei relacionando esses filmes de forma diferente. Esta semana, semana de tantas notícias e postagens carregadas de raiva e de informações acerca de trágicos eventos motivados pela intolerância que autoriza o desejo e a ação de gente “deletar” gente (talvez da mesma forma que os caçadores de androides de Scott não se percebiam matando, mas, sim, retirando replicantes), volto a assistir Blade Runner e acabo com uma sensação, surpreendentemente, boa. Penso na cena do personagem de Ford olhando para sua Rachel, olhar que a humaniza por considerar suas memórias e seus sentimentos, cultivados a partir daí (apesar de saber se tratar de uma memória implantada, foi por ela apropriada e, então, é dela e a faz capaz de se emocionar). Na mesma hora me vem a imagem do personagem de Phoenix desolado ao perceber que sua Johansson nunca vai poder oferecer a reciprocidade do amor a ela devotado, já que ele é apenas mais um usuário do sistema e ela não tem corpo ou memória afetiva.
Então, se o ser humano tem a estranha mania de não desistir de ser cada vez mais poderoso, sempre ansioso por aumentar seu domínio sobre tudo e todos, ele, também, tem uma capacidade empática que, muitas vezes, o faz parar no olho no olho com alguém, que o faz sofrer pelo outro, que o faz querer ajudar alguém em quem reconhece a dor, que o faz querer ser amado não por sua força, mas pelo reconhecimento de sua própria capacidade de amar. Enfim, que o faz portador, também, de uma estranha mania de ter fé na vida! Sendo assim, sigamos lutando por um mundo melhor e mais solidário!

terça-feira, 10 de março de 2015

Asas do Desejo


Asas do Desejo
                                           Por Ana Lucia Gondim Bastos
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Desde a época que éramos bípedes da savana - nos lembram os anjos de Asas do Desejo – um ou outro de nós, quem sabe um grupo ou outro de nós, corria em zigue zague seguido por pedras atiradas de longe. Assim, pelo menos nos contam os anjos de Win Wenders (1987), as guerras costuram nossas histórias, fazendo-as comportarem respeitáveis doses  de destruição, de separações, de medos, de inseguranças, de desconfianças, de ódio e desalento. O vazio existencial, a solidão, a vulnerabilidade da condição humana e as imperfeições da vida que sabemos sustentar a guerra e a paz, nos atordoam e afligem. Nos confundem pensamento e roubam momentos de satisfação. Enquanto isso anjos passeiam entre nós, sem que os percebamos, testemunhando nossas dores, apoiando nossas cabeças caídas num momento de desesperança ou nos ajudando a suportar o peso dos ombros exaustos. Nesse contexto de tantas repetições e talvez poucas mudanças, no universo preto e branco de quem não sente o peso dos ossos e o cansaço do corpo, um anjo percebe-se encantado com o universo de quem, com tudo isso, espera o amanhã, se alegra num dia de domingo tranquilo, ama pessoas e com elas estabelece vínculos afeto que lhes aquece o coração. Se diverte no circo ou é trapezista que encanta o público que se deixa iludir confiando na leveza e na facilidade de voar do artista. Esquenta as mãos esfregando uma na outra, suspira de prazer tomando um chocolate quente numa tarde fria, faz filmes para contar histórias pros outros e escolhe roupas e chapéus para sair às ruas. Uma vida de colorido ímpar! Uma vida que vale experimentar, mesmo que o custo seja a consciência de que um dia acaba. Um anjo se joga para experimentar e Win Wenders nos presenteia com diálogos densos que, em muitos momentos, no faz recebe-los num fôlego só. Um filme que fala sobre o peso da existência humana em forma de poesia, que é como podemos dar conta dele.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Entre ontem e amanhã: Meia Noite em Paris


Entre ontem e  amanhã: Meia Noite em Paris
Por Ana Lucia Gondim Bastos
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Entre o passado e o futuro encontra-se um tempo menos passível de idealizações, entretanto, o único efetivamente fértil para realizações. O futuro pode ser imaginado de diversas formas, tendo a passagem de um cenário idealizado a outro, sempre facilitada. É nele que projetamos encontrar o algo que, ao alcançarmos, poderá nos fazer “felizes para sempre”. Ao contrário do que propõe a poesia de Cecília Meireles “Ou Isso ou Aquilo”, o futuro é um tempo no qual o isso, o aquilo e muitos mais aquilos outros convivem e se alternam sem maiores compromissos com as leis da física. Uma hora posso me imaginar viajando pra China e logo em seguida me imaginar na Califórnia, posso vir a falar várias línguas ou conquistar qualquer título ou prêmio. Na hora da realização, no entanto, se faz preciso considerar os limites do tempo, do corpo, do mundo, das  relações, das habilidades e competências de quem vai priorizar o que realizar. É, justamente, aí que  o “Ou Isso ou Aquilo” se impõe, por vezes, de forma dolorosa. Uma dor que, quando enfrentada, pode anteceder a satisfação da realização do possível, realização do que se compartilha e do que promove transformações nos mundos externo e interno do seu responsável. Nesse processo, novos sonhos e objetivos vão ganhando contorno e o sentido da vida vai sendo renovado, sempre no presente. Assim, apesar da esperança habitar o por vir, ela só pode ser renovada no aqui e agora de cada história.
E quanto ao passado, o que podemos falar? O passado é um tempo passível de edição, de utilização de uma espécie de Photoshop da memória. É isso que nos faz nos orgulhar enormemente do que acontecia e do como as pessoas se relacionavam “no nosso tempo”, como se nosso tempo não fosse o presente, ou melhor, como se o presente não fizesse parte de um tempo que é nosso, tão nosso quanto o que já foi ou o que vai vir a ser, até que a morte nos separe da vida entre os homens. Da mesma forma, muitas vezes, tal idealização nos faz achar que nascemos no tempo “errado”. Pensamos que tudo seria diferente e mais promissor se estivéssemos num tempo anterior ao do nosso nascimento, com certeza, tempo de maior fartura e produtividade intelectual. Tempo que não comportava o vazio existencial que, tantas vezes, o presente comporta por considerarmos a vida insatisfatória ou por termos dificuldade de nos conformarmos com o fato de que a felicidade absoluta e plena só pode fazer parte da vida como abstração. Esse é o tema do brilhante e delicado “Meia Noite em Paris” (2011) , primeiro filme da série de roteiros nos quais Woody Allen dedicou-se a levar seus personagens para passear para fora dos domínios dos grandes centros urbanos dos Estados Unidos. Nele, Gil Pender (personagem interpretado por Owen Wilson), um roteirista com espaço já conquistado nos estúdios hollywoodianos e prestes a casar com uma bela moça de uma rica e conservadora família americana, tem, em uma viagem a Paris, a oportunidade de busca de referencias e inspiração para a mudança de rumo de sua trajetória que, há tempos, o vinha incomodando. Inicialmente, tais oportunidades acontecem em visitas ao passado parisiense, numa espécie de mágica que desresponsabiliza Gil do processo. Aos poucos tais visitas vão sendo entendidas e tratadas, pelo próprio protagonista, como fugas ao passado que, como tal, só poderiam condena-lo a um ciclo de repetição sem fim, não oferecendo chance alguma para o novo se manifestar no presente, única morada da esperança e espaço onde o encontro transformador com o outro pode acontecer. Numa história bem contada, com participações de personagens como Buñuel, Dali, Toulouse, Cole Porter e Picasso, no cenário encantador da Paris de todos os tempos e embalados por uma trilha sonora maravilhosa, impossível não projetarmos novas viagens a tempos e lugares de sonho. Se tais projetos ficarão no passado, no futuro ou entre o passado e o futuro, assim como, a serviço do que colocaremos tais projetos, fica a cargo de cada um, condicionados pelo o que estabelecemos como condutores de nossas narrativas. Seja qual for seu caso, Bon Voyage!

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Sobre Birdman e outros super heróis

Sobre Birdman e outros super heróis 
Por Ana Lucia Gondim Bastos
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Cercados pelo universo da publicidade, com seus sem-número de promessas de felicidade, de sucesso e de receitas para alcançar a perfeição e a plenitude, há gerações, assistimos meninos e meninas tornarem-se adultos crédulos em capas mágicas e em finais triunfantes. Chegam a acreditar que se não se sentem plenos, é porque não fizeram a coisa certa, ou seja, não acertaram na escolha do caminho que, com certeza, os levaria ao reino da fruição e do contentamento. Logo, a frustração sem tamanho os assombra com tanta força quanto a utilizada para se manterem agarrados à ilusão da completude narcísica. E assim vão vivendo numa montanha russa que ora os faz acreditar na supremacia de seus super poderes, ora os leva em queda livre ao vazio existencial. É o que acontece com Riggan Thomson, protagonista de  Birdman, filme de Alejandro Gozález (2015). Um ator (interpretado por Michael Keaton – nosso “para sempre” Batman, diga-se de passagem) que teve seu tempo áureo de fama e sucesso interpretando o Homem Pássaro, um super herói dos quadrinhos. No entanto, desde que se recusou a interpretar o personagem em seu quarto filme, Riggan deixou de ser o alvo dos holofotes da fama do cinema americano, grande ditame de critérios de sucesso. Prestes a estrear um novo trabalho no qual além de atuar, também assinará a direção, Riggan precisará lidar com tudo o que reside por trás das cortinas. Nesse momento de grande pressão e expectativa, o Homem Pássaro aparece como um alter ego que o convoca a entrar na referida montanha russa que leva, com rapidez e sem escalas, da onipotência à submissão. A interação dele com os outros personagens da trama – por exemplo, com a filha recém egressa de uma clínica de desintoxicação (interpretada por Emma Stone) ou com Mike, ator que entra para dividir o palco e o brilho da peça (interpretado por Edward Norton) – vai oferecendo outra complexidade à relação de Riggan com seu Homem Pássaro ou, mesmo, com seus super poderes. A dificuldade de se desvencilhar dessa relação com seu super herói, que vai tomando conta da cena e ganhando proporções delirantes, começa a comprometer a capacidade de manejo dos diversos papéis que a vida reserva à Riggan (no palco e fora dele). Assim, Bidman nos leva à necessária reflexão sobre a importância, sobre a dor e sobre a beleza da desilusão que, segundo Maria Rita Kehl , “nos coloca diante de nossa condição: somos humanos, somos mortais, somos solitários, somos incompletos. Mas, uma vez aceitas as determinações fundamentais da condição humana, uma vez rompidos com os domínios da fantasia, se abrem para nós as possibilidades infinitas do domínio das paixões: nem a onipotência, nem a submissão, mas a conquista do território humano. O mais vasto território por onde o desejo pode se mover”. (A Psicanálise e o Domínio das Paixões In Os Sentidos da Paixão – Cia das Letras, 1986).


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Onde Whiplash esbarra no Cisne Negro


Onde Whiplash esbarra no Cisne Negro
             Por Ana Lucia Gondim Bastos
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Dois jovens no início de suas trajetórias profissionais, buscando abrir espaço para mostrar a que vieram: Andrew com suas baquetas e Nina com suas sapatilhas.  Andrew tem apenas o pai como figura parental de referência e Nina, apenas a mãe. O pai de Andrew parece se sentir tão abandonado quanto o filho, por uma mãe sobre a qual pouco se sabe, pois a dupla pouco conversa, apesar de se fazerem companhia, principalmente para assistir a filmes comendo pipoca (aliás, os raros diálogos entre pai e filho se limitam à comentários sobre a pipoca da hora do filme). A mãe de Nina demostra a todo momento ter sua vida girando em torno da vida da moça, ainda tratada como criança, ou melhor, tratada como uma boneca na qual a mãe projeta todos os seus ideais. São personagens de filmes e de diretores diferentes. O primeiro é o personagem central de Whiplash de Damian Chazelle (indicado ao Oscar de melhor filme de 2015) e interpretado por Miles Teller. A segunda de Cisne Negro de Darren Aronofsky (indicado ao Oscar de melhor filme em 2011), interpretada por Natalie Portman. Têm em comum, além da juventude, a atitude de isolamento, a insegurança, a dificuldade de relacionamento e o sonho de encontrarem um lugar ao sol, um caminho de sucesso nas artes escolhidas: ele na música e ela no ballet. Sim, a determinação e a disciplina são outro ponto em comum desses jovens que nos cativam, inclusive, por suas fragilidades. Impossível não assistir a um desses filmes sem torcer por eles! Torcer para que fiquem bem, para que passem a curtir as possibilidades que a música ou a dança podem lhes oferecer, para que se relacionem de forma mais leve com o mundo e para que, sim, tenham seu esforço reconhecido. Mas, eles parecem querer mais que isso, eles precisam de uma aprovação, de um reconhecimento e de um desempenho sobre humanos. Sofrem da sensação de nunca serem suficientes. Suficiente para que? Acho que não chegam a se perguntar. Mas, encontram em seus destinos um maestro (no caso dele)  e um coreógrafo (no caso dela), convencidos de terem a medida da excelência e dispostos a passar por cima de qualquer limite e a correr qualquer risco para chegar onde querem: na execução perfeita da música ou da dança. Um encontro que, em alguns momentos, pode até parecer promissor, mas, que logo evidencia seu poder desorganizador e destrutivo. Os cartazes dos filmes contam de uma boneca de porcelana quebrada e de um rapaz que tem nas baquetas trampolim para um abismo: cartazes que contam tudo, traduzem os filmes. Apesar de terem optado por formas diferentes de desfecho para seus roteiros, os diretores, nessa perspectiva que apresento, falam da mesma coisa: da inconsequente falta de cuidado com a fragilidade humana que algumas relações comporta, e da inversão de valores que acontece toda vez que a busca pela perfeição impede de se observar limites humanos. O sentido da vida passa a escapar da própria vida, a se sobrepor a ela. Assim, ela passa a ser apenas um meio para se deixar um legado de perfeição, ainda se morra mais cedo, mais rápido e de forma mais dolorosa. Num dos filmes isso fica explicitado no desfecho, no outro, nem tanto. Contudo, o final dramático me pareceu evidente em ambos. Me surpreendeu, portanto, ouvir opiniões que traziam a ideia de que um dos personagens tenha obtido um “final feliz” na busca pela perfeição. Até porque a perfeição marcaria o fim do desejo, o encerrar de qualquer busca, em outras palavras, se refere à morte. Seria esse o “final feliz” que tais opiniões expressam ou será que não se deram conta do preço pago pela tal busca da perfeição?

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Histórias de crianças - Parte II


ERA UMA VEZ UMA VEZ UM PAPAI NOEL (2005)
Por Ana Lucia Gondim Bastos

Era dia de encerramento de ano letivo. A despedida deste, vinha acontecendo há quase um mês,  para a turma daquela menina que estava prestes a encerrar o ensino infantil e ingressar no Fundamental. Mas, último dia é sempre último dia - é nele que o coração aperta pra valer! Pela manhã cantariam, pela última vez, no coral das crianças menores e, à noite, a turma que vinha estudando o sistema monetário brasileiro enquanto economizava moedas num cofre comum, se reuniria para um filme com pizza, na própria escola. Definitivamente, programa de gente crescida!
Aconteceu que entre o programa da manhã e o da noite, aquela menina sentiu a necessidade de conversar com a avó sobre as coisas da vida, sobre verdades e mentiras. Desde sempre estabelecera com a avó materna uma relação de bastante cumplicidade. Acho que foi por isso que a escolheu para comunicar seu crescimento e pedir ajuda no momento de entrada no código dos adultos.
Perguntou de maneira, inicialmente, displicente:
- Vó, existe Papai Noel de verdade?
A avó orientou que conversasse com a mãe, pois as mães, acreditava ela, tem um jeito muito especial e bonito de contar para as filhas sobre os mistérios da vida. Mas, a menina insistiu:
- Vó, quero saber de você! Gosto do jeito que você me conta as coisas. – Acho que ela se referia à forma direta e sem floreios, característico dessa avó, de  tratar os assuntos de um modo geral, dos mais simples aos mais delicados.
E, quando a avó confirmou a hipótese, provavelmente levantada há algum tempo, a menina surpreendeu-se:
- Vó, mas, todos os pais mentem pros seus filhos? – perguntou em tom de indignação.
Talvez tenha se sentido à vontade para fazer essa pergunta por não lembrar, pelo menos por um momento, que sua avó também é mãe e que, portanto, pela pesquisa desenvolvida até aqui, também faria parte do grupo de mentirosos e traidores.
A avó, então, orientou, novamente, que conversasse com sua mãe. Desta vez argumentou que só assim teria certeza de que os pais não mentem para os seus filhos, e sim, preparam-nos para o mundo.
O certo foi que, desta vez, ela acatou a sugestão e partiu para o segundo passo de sua investigação. Num momento oportuno, perguntou baixinho:
- Mãe, Papai Noel existe de verdade?
Sem saber da primeira parte da história, a mãe respondeu com outra pergunta:
- Você quer saber se existe uma pessoa bem velhinha, morando num lugar bem gelado e pouco habitado, que fabrica brinquedos o ano todo para distribuí-los para as crianças do mundo, num único dia, quando dirige um trenó voador puxado por renas encantadas?
- É, mãe! É isso que eu quero saber, se Papai Noel existe de verdade! – repetiu, já meio sem paciência.
- O que você achai? – voltou a perguntar.
- Acho que existe, mas quero saber de você! Papai Noel existe mesmo? É verdade?
- É verdade, já que acreditamos. Na verdade, a gente constrói verdades! – respondeu, a mãe, cheia de convicção.
- Mãe, mas eu quero a verdade verdadeira, Papai Noel existe ou não?
- Existe tanto quanto o saci ou o curupira.
- Então não existe, mãe!
- Existe como lenda. Além do mais, numa situação de medo, não tem quem não acredite em qualquer uma dessas assombrações!
Então, veio a pergunta mais intrigante. A que esteve o tempo todo por trás de todas as outras:
- Quer dizer que os pais mentem pros filhos, o tempo todo?
- Não, filha, não é mentira, é só uma forma de apresentar o mundo de uma forma mágica e cheia de encanto. Você, agora, já sabe ler, já sabe escrever e já entende o mundo como uma criança crescida. Mas, só uma criança que acreditou na magia pode continuar experimentando o mundo com encantamento. Com o mesmo encantamento que virá a apresenta-lo, às crianças menores, quando for adulta.
O papo parou por aí, mas não foi possível deixar de notar que, ao escolher a roupa para o programa da noite, pediu para que a mãe pregasse à camiseta branca um estrela de paetê prata, adereço que deu um charme todo especial à roupa. A mãe lembrou que a estrela prateada que, agora fazia parte de uma camiseta a ser usada com calça jeans, um dia fez parte de uma fantasia de fada. Naquele momento, assistiu ao encantamento ser ressignificado e teve a certeza que seria  levado pela vida afora.

domingo, 25 de janeiro de 2015

WHIPLASH


WHIPLASH
Por Ana Lucia Gondim Bastos
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A busca pela perfeição pode ser o outro lado de um relato selvagem. Somos humanos e, portanto, temos recursos para lidar com nossos impulsos e para dar a eles destinos diferentes ao que acontece na “natureza selvagem”. Sim, somos seres de cultura e, portanto, é impossível pensarmos nossa existência dissociada de nossa história e de nossos contornos sociais. Lembra-nos Hannah Arendt que, em latim, a expressão VIVER é a mesma da que comunica ESTAR ENTRE OS HOMENS (inter homines esse), assim como MORRER e DEIXAR DE ESTAR ENTRE OS HOMENS (inter hominies desinere), são sinônimos. Daí a riqueza de recursos para lidar com nossas constantes demandas internas e externas, riqueza em função da qual existe a possibilidade de não fazermos relatos selvagens de nossas narrativas de vida cotidiana (retomando a temática trazida por Damian Szifrón em sua última produção e discutida aqui no blog no dia 10/12/2014). Assim, ser humano é, também, ser capaz de produzir arte e ciência. É ser capaz de criar sempre novas formas de ampliação das possibilidades de expressarmos a dor e a delícia das nossas experiências no mundo e de ampliarmos, inclusive, as possibilidades de experiências que podemos ter. E foi assim que construímos engenhocas para voar, para nadar mais fundo ou até mais longe, para falarmos à qualquer distância, para ouvir a música que uma outra pessoa tocou num outro lugar, para congelar imagens de coisas e momentos belos e que nos trarão alegria ao rever, que inventamos histórias, plantamos flores e também árvores de sombra e frutos gostosos... ou seja,  que “pintamos e bordamos” nesse tempo que passamos por aqui. Enquanto isso, é claro, ensinamos para os jovens que continuarão aí, após nossa morte, a ouvir e, quem sabe tocar ou dançar, as músicas que nos fizeram sonhar, a como construir os lugares que hoje vivemos e tudo o que sabemos sobre o “pintar e bordar” atual, para que tais jovens sejam capazes de continuar, sempre transformando e ampliando, nossa arte de ser gente no mundo!
Mas, se tudo isso é verdade, uma verdade até que bem divertida, também é verdade que nossas engenhocas não são infalíveis, que nosso corpo não é incansável e que nossa possibilidade de controle sobre os fatos, atos e criações são limitadas. E, por isso, comecei esse texto com a afirmação de que viver a busca pela perfeição pode representar o outro lado da moeda de viver como se só tivéssemos a alternativa de narrativa, baseada nas reações impulsivas, instantâneas e impensadas que são a força motriz dos relatos selvagens. E como todo outro lado de uma mesma coisa, os dois acabam por resultar em relações e relatos de vida análogos.
Não costumo apreciar muito subtítulos escolhidos para traduções de nome de filmes americanos, mas, no caso de Whiplash (2014), “a busca pela perfeição”, caiu como uma luva! Desse filme, do jovem diretor Damien Chazelle, também saímos impactados (e exauridos) pela tensão constante que Terence Fletcher, regente da principal orquestra de jazz de um conservatório americano (papel executado, com maestria, por JK Simmons), estabelece com os músicos que estão sob sua batuta. Ele acredita em perfeição através da superação dos limites e, para isso, vale tudo: humilhação, violência física e todo tipo de autoritarismo, a que seus músicos acabam se submetendo pela suposta chance de despontarem  como um melhor do mundo. Num momento em que ser estrela parece ser sempre muito mais promissor do que ser constelação, não é de se espantar com a sedução que Fletcher exerça sobre os músicos em formação - ainda que o exemplo que utilize constantemente seja o de Charlie Parker, cujo fim foi precoce e trágico, apesar de nos ter deixado um legado genial com sua música.
O ponto alto do filme, a meu ver, é o encontro do jovem solitário e inseguro baterista, Andrew (personagem que, com certeza, marcará a carreira de Milles Teller), com o impiedoso Fletcher. O encontro dos anseios de ambos, de suas inseguranças, suas crenças (ou falta delas), um encontro de química explosiva que nos tira o fôlego e traz a (excelente, diga-se de passagem) trilha sonora para um outro lugar, para o lugar de personagem central e não apenas de pano de fundo. Vale à pena a experiência! Vale, também, pensar o que queremos levar ou deixar dessa/nessa nossa experiência de vida passageira! No meu caso, fico ainda a pensar: Por que os filmes dos diretores, nada veteranos, Damien e Demian tocaram tão fundo, tão mais fundo ou de uma forma tão diferente? Até agora, na minha opinião, as estatuetas de melhores filmes, deste ano, deveriam ir para eles.