quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Mapear para Existir


Mapear para Existir
Por Ana Lucia Gondim Bastos
O poema “Mapa” de Murilo Mendes, está entre os meus preferidos! Fala de uma cartografia muito particular: mapear sua história e referências, buscando contornos para as emoções, abrindo a possibilidade para, então, compartilha-las. Cartografia que não menospreza a complexidade da condição humana, por achata-la na bidimensionalidade, por saber-se sempre em transformação. É como uma fotografia que congela um momento e conta de um recorte de olhar, mas não aprisiona almas. Na 31a Bienal de arte, “Como (ler/pensar/lidar/conhecer) coisas que não existem”, num enorme paredão, Qiu Zhijie pintou, à mão, um mapa de terras que existem dentro e fora dele (e de nós), com uma delicadeza incrível! Terras e trilhas que contam do traçado constituído e constituinte da subjetividade de pessoas ou povos que passaram a existir naquele paredão, até o último dia de Bienal.  E é assim que o chinês nos ensina a como fazer com que terras, ilhas e trilhas passem a existir, para podermos falar sobre elas: Basta contorna-las, à mão!
Eis o Mapa de Murilo e de Qiu, sem dúvida grandes inspirações para quem quiser começar o seu!
“Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.

Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.

Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.

Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.

Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.

Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações…
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.

Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noites, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.Andarei no ar.

Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.

Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”…
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito…
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.

Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre
em transformação.”


terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Relatos Selvagens


RELATOS SELVAGENS
Por Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 

Em 1930, Freud publicou “O Mal estar na Civilização”. Dedicou um livro inteiro discutindo a inevitabilidade desse mal estar, preço pago para vivermos em sociedade, fruto da constante necessidade de lidarmos com nossas pulsões, em relações sociais de complexidade ímpar. Falamos em pulsões e não instintos, justamente, por estarmos tratando de uma particularidade humana, que faz com que as demandas pulsionais não tenham respostas idênticas, tais quais os instintos dos outros animais. 
Cada momento histórico oferece (im)possibilidades de tentarmos dar conta de tal equação de duas variáveis, quais sejam as demandas pulsionais e as demandas sociais. Contudo, vale ressaltar, é sempre uma equação bastante complicada e nem sempre bem sucedida.
Em 2014, Damián Szifron apresenta-nos, em breves relatos rodados com maestria e ótimos atores, momentos nos quais nos percebemos distantes das possibilidades de lidarmos com nossas feras utilizando recursos simbólicos, o pensamento ou a memória  (estes, também, de manifestações bem particulares, no gênero humano). Não acho que o filme “Relatos Selvagens” trate nosso momento histórico como um momento de especial selvageria, com cada vez menos espaço para o pensamento. Mas, sem dúvida, ao trazer a reflexão para mais próximo de nosso cotidiano, não nos deixa sair do cinema com a reconfortante sensação de “ainda bem que as coisas não são mais assim”! Como já podemos, porventura, ter saído de um filme baseado em textos de Victor Hugo (1802-1885), por exemplo.
Depois de um filme impactante desses é impossível não nos percebermos próximos a entrar num relato selvagem, cada vez que a única alternativa nos parecer se limitar a “explodir tudo”. E, como o pensamento, doutra sorte, é o que pode nos afastar de tais relatos (ou de experiências com relatos impossibilitados, pela própria ausência de abertura para o pensar), eis um filme indispensável!