sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O Preço do Amanhã em Gattacata, no Show de Trumann ou no Terminal


 
O Preço do Amanhã em Gattacata, no Show de Trumann ou no Terminal
Por Ana Lucia Gondim Bastos
Em tramas que se passam em labirintos impostos por determinações sociais, os personagens de Andrew M. Niccol trazem à tona a dura tarefa de se dar sentido à vida e à trama que ela propõe. Em filmes que estão, quase sempre, no registro da distopia, o ora roteirista, ora produtor, ora diretor e ora tudo junto, desenha cenários que nos faz, muitas vezes, desacreditar que é possível mudar de tela no vídeo game no qual, por vezes, nos percebemos, numa repetição infinita e controlada por outrem. O preço do amanhã é, portanto, a possibilidade de questionar a inevitabilidade imposta e buscar protagonizar uma história, tal como o personagem de Woody Allen que escapa da tela para viver um grande amor. Sem o mesmo romantismo, contudo bem mais otimista quanto à possibilidade do sucesso e sustentabilidade do escape de um sistema achatador.
Em Gattaca e em O Preço do Amanhã, o diretor e roteirista aposta na ficção científica para discutir temas como eugenia e desigualdade social,  seus porquês e por quem. Apresenta cenários que evidenciam como todos perdem nesses (nossos) sistemas que sustentam e são sustentados por essas estratégias, mesmo os que por elas são privilegiados. Todos presos numa repetição que impede a construção de sentidos consistentes para as narrativas de vida. Já no Show de Trumann e no Terminal, Jim Carrey e Tom Hanks dão vida a personagens encerrados em labirintos cujas determinações desconhecem ou que estão fora de sua possibilidade de ingerência, numa espécie de processo Kafkiano que não os permite atravessar fronteiras- seja da cidade cenográfica, seja do terminal de passageiros.  Mas, como disse anteriormente, Niccol sempre deixa claro que acredita nas brechas de transformação, nas possibilidades de movimento e na capacidade humana de buscar novos caminhos. Enfim, é possível perceber o traço de Niccol em todos os filmes, por diferentes que sejam (seja em gênero ou em capacidade de tornar a trama mais ou menos envolvente ou apresentar finais mais ou menos surpreendentes). Traço esse que encontro tradução na "Pedagogia da Autonomia" de Paulo Freire e que nos devolve ao lugar de protagonistas, por difícil que seja o contexto no qual construímos nossa história:
“Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo. Se sou puro produto da determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço no mover-me no mundo e se careço de responsabilidade não posso falar em ética. Isso não significa negar os condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa reconhecer que somos seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-me reiterar, é problemático e não inexorável”(p.19)

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Notas sobre uma visita à Bienal do Livro de 2014


Notas sobre uma visita à Bienal do Livro de 2014
Por Ana Lucia Gondim Bastos

Tenho como programação obrigatória, há muitos anos, pelo menos uma visita à cada Bienal do Livro. O encontro marcado com autores como Ziraldo e Maurício de Sousa faz parte da minha agenda, de dois em dois anos, há, pelo menos 33 anos! A alegria, a simpatia e o entusiasmo com os quais recebem as crianças de todas as idades, é de comover! São milhares de meninos maluquinhos, de meninas maluquinhas e de professoras bem maluquinhas, isso sem contar com as vovós delícias, meninos marrons e toda aquela gente que se sente parte integrante da Turma da Mônica (com todo o direito de se sentir, diga-se de passagem) encontrando com os autores que, com certeza, só podem ter escrito aquelas histórias todas pensando em cada um deles! “Ele só pode conhecer a minha avó, para inventar uma personagem tão parecida com ela”, pensa um menino maluquinho qualquer. Outro tem a certeza de que ele entrou no sonho dele para recolher um tanto de outras histórias. Uma Julieta bem maluquinha - que talvez se chame Magda, Fernanda ou Jasmin – pensa que aquela personagem que é  a amiga Carolina, certamente, foi inspirada na Roberta do sétimo ano C, da escola onde estuda. E assim a gente vai misturando os nossos personagens aos deles e nos tornando, todos, parte de uma grande família! Família que conta um monte de fatos engraçados na fila dos autógrafos, que guarda lugar uns pros outros quando dá vontade de ir ao banheiro ou beber água quando a fila demora (e a fila demora sempre, porque os autores precisam dar a atenção devida às verdadeiras inspirações para suas histórias, que somos todos nós!). E o Ziraldo canta músicas para as Lauras e escreve Vivas antes dos nomes das dedicatórias e faz o Raul descobrir que o inverso de seu nome é Luar, e diz se impressionar como Julia cresceu, além de desenhar ondas do mar nos emes das Marianas, flores nos efes das Floras e tantas outras delicadezas que deixam todo mundo com o peito cheio de orgulho por seu um menino maluquinho ou uma menina maluquinha de nascença (sim, porque boa parte deles já tiveram seus pais meninos e meninas maluquinh@s). São encontros saudáveis e muito alegres... encontros que fazem sonhar e que ampliam a vontade de criar e de conhecer muitos outros personagens e muitos outros textos de muitos outros autores que, generosamente, deixam as histórias que trazem na cachola escorregarem para o papel, para compartilhar com quem quiser!
Nesta Bienal, entretanto, presenciei, também, um outro tipo de encontro entre autores e seus leitores. Estes últimos me entristeceram e me preocuparam. Era uma legião de adolescentes que, aos gritos, se debatia para chegar mais perto das autoras dos livros que as jovens sacudiam freneticamente com braços levantados para cima. Algumas choravam, também aos gritos. Me senti presenciando uma catarse coletiva que pouco combinava com a ideia de mergulho na leitura, que eu nutrira até aquele dia. Foi quando uma mãe me explicou: “minha filha devora livros de 500 páginas!”. Quer dizer que aquilo tudo está num registro semelhante ao dos transtornos alimentares? As autoras, em particular uma autora, contava até três para que suas fãs se manifestassem estrionicamente, enquanto ela filmava ou fotografava aquele mar revolto de braços descoordenados. O objetivo, dizia a programação, era de um “papo de meninas”, mas não consigo imaginar que bate papo poderia sair dali. Que tipo de reflexão aquelas muitas páginas poderiam ter suscitado? Pra que tipo de devaneios poderiam ter levado cada uma daquelas muitas leitoras? Confesso que não fiquei para testemunhar o tal bate papo, pois estava muito descrente em seu potencial enriquecedor para me deter por mais tempo àquele espetáculo. Ainda bem! Pois, assim, consegui chegar a tempo de ouvir duas encantadoras histórias contadas pela talentosa Kiara Terra. Foi lindo ver gente grande e gente pequena gargalhando com suas encenações, transformando significados e produzindo novos sentidos, enquanto manipulava objetos do dia a dia que viravam pessoas, bichos, doces, ou qualquer outra coisa que ela propusesse, ali bem na nossa frente e só usando o poder da nossa própria imaginação! Isso mesmo, era a mágica de verdade, bem diante dos nossos olhos! Ao contrário dos semi deuses e seus adoradores, Kiara trazia, para esse encontro com seu público, o encantamento das coincidências das vidas ordinárias. E todo mundo ria lembrando do dia que teve vontade de fazer o que não devia, admitindo que nem sempre suas intencionalidades eram tão nobres, lembrando, também, dos medos e da chuva, das alegrias e das mágoas que fazem parte da história de todos e de cada um... afinal, ninguém é bailarina do Grande Circo Místico!
Foi assim que, mais uma vez, o saldo do passeio foi positivo e fico aguardando que venham as próximas... histórias, bienais e histórias sobre bienais!