terça-feira, 12 de agosto de 2014

Lá na Terra do Nunca


Lá na Terra do Nunca
Por Ana Lucia Gondim Bastos

A história de Peter Pan e Wendy (Barrie, 1901) conta de um vôo realizado num momento da vida, no qual é inevitável a percepção de que se tem que crescer. Um vôo para uma Terra regida por duas forças antagônicas representadas, respectivamente, por um menino que tem todos os dentes de leite e não envelhece nunca  e por um velho pirata, assustado com a morte, que tem em seu encalço um jacaré que, através do tique taque do relógio que leva dentro da barriga, anuncia que o tempo do pirata Gancho está acabando. Na verdade o jacaré, representante da morte, já lhe engoliu um braço e, em breve, o engolirá inteiro! Esse vôo ocorre, na maior parte das histórias, durante a adolescência. Contudo, adverte Barrie, os pais dos aventureiros precisam cuidar de manter as janelas de casa abertas para que seus filhos possam voltar e não fiquem presos lá, sem conseguir colocar seu desenvolvimento em curso, podendo aproveitar as novas fases da vida. O próprio Barrie, ao que tudo indica, foi um aventureiro que teve a janela de casa fechada em virtude da precoce morte do irmão mais velho que fez com que sua mãe caísse numa depressão que a impediu de ter um olhar de investimento no filho mais novo. A inspiração para o personagem Peter Pan também parece ter vindo de uma outra história de janela fechada: dessa vez por conta da morte repentina do pai de um garotinho que, juntamente com seus outro quatro irmãos, costumava encontrar com Barrie durante seus passeios com seu cachorro São Bernardo. E exemplos de janelas fechadas e pessoas presas à Terra do Nunca: crianças eternas ou velhos (não menos infantis, até por serem o outro lado da mesma moeda) apavorados com iminência da morte, driblando qualquer sinal da passagem do tempo, não deve faltar no roteiro de vida de ninguém. Ainda mais em tempos de superinvestimentos narcísicos! Vale notar que a idade é bem variada, tanto das crianças eternas, quanto dos velhos assustados, já que estamos falando de atitudes diante da vida, das suas dores e delícias. Sempre gostei dessas imagens para falar sobre caminhos e percalços do desenvolvimento humano e, por isso mesmo, acho que mais cedo ou mais tarde, acabaria escrevendo um texto sobre Peter Pan. Contudo, acho que sei porque foi hoje que tive vontade, talvez necessidade, de escrever este texto. Hoje, tive a notícia da morte de Robin Williams, ao que parece, por suicídio. O ator que tinha a cara de Peter Pan, não só por ter feito um filme representando o personagem, mas por tantos outros papéis lúdicos e encantados que trazia no currículo, parece ter encontrado janelas fechadas! Ele, que abriu, para tanta gente, tantas janelas com seus personagens, desistiu te tentar abrir as suas próprias. Um momento duro, de muita dor e que merece muito respeito. Deixo, então, aqui, meu registro de gratidão pelo Popeye, pelo Path Adams, pelo Peter Pan, pelo Gênio do Aladin, pela babá quase perfeita, pelo idealizador da Sociedade dos Poetas Mortos e por todos os personagens que continuarão conosco trazendo a magia que precisamos para encarar a vida adulta livres da Terra do Nunca!


domingo, 10 de agosto de 2014

E agora, como fica o filme?


E agora, como fica o filme?
Por Ana Lucia Gondim Bastos


Tem momentos da vida que a sensação é a de que o futuro já chegou. As perguntas que são feitas sobre nós e sobre nossos processos de delimitação identitária, passam a ser todas feitas no tempo presente: “Que projetos você desenvolve? No que trabalha? Quantos filhos tem?”. Foi-se o tempo do “O que você será quando crescer? Onde vai querer estudar? O que fará, quando a faculdade acabar?”. O futuro chega quando a maior parte das perguntas deixa de usar verbos conjugados no futuro e aí, a gente começa a se perguntar se o roteiro deveria ter sido esse mesmo e se existe perspectiva de finais felizes (ou pelo menos, finais satisfatórios). Começa a se questionar sobre as escolhas já realizadas, a pensar acerca da importância de cada um dos muitos personagens que fazem parte de tal roteiro, como se condensam, como se encontraram e desencontraram em cada momento, em cada cena... Às vezes dá vontade de amassar o papel, no qual temos impresso o roteiro até aqui, e começar tudo de novo. Mas, então, a gente pensa em tanta gente legal que já faz parte dessa história, em tantas construções sólidas, em tantas cenas que não merecem ser apagadas... Tanta coisa, momentos e pessoas que nos trouxeram até aqui, que a gente muda de ideia e resolve continuar de onde parou e não abandonar a cadeira de diretor.
Dois filmes geniais falam de momentos como esses: Fellini 8 ½  (1963) e, tempos depois, Stardust Memories de Woody Allen (1980). O “como continuar?” de dois cineastas quarentões, dois já reconhecidos mestres na arte de transportar pessoas para dentro das histórias por eles inventadas, capacitando-as a se conectarem, cada vez mais, aos seus próprios dramas. Guido Anselmi e Sandy Bates são os diretores personagens dos diretores Federico Fellini e Woody Allen. Aqueles que oferecem corpo e alma para que sejamos inseridos num universo onírico no qual os personagens de nossas vidas inteiras (ops, das deles!) possam interagir em tempos e espaços múltiplos, através dos quais  fantasia e realidade passam a se mesclar de modo muito particular, de modo à abrir a possibilidade para o novo: o novo rumo para um novo filme, um novo gênero de filme ou até para, quem sabe, uma nova forma de rodá-lo. Mas, aí, é quando se mostra possível se dar conta de que o novo não brota do nada, brota, justamente, da história já contada até aqui. E que a história contada até aqui, até que dá bastante espaço para novos finais bem interessantes. E, mais: sabe que, pensando bem, até que foi bem contada e dirigida?!