sexta-feira, 13 de junho de 2014

Elena: Arquivos de Memória



(Escrito para EVENTO REALIZADO NO DIA 03/07/2013 NO DEPARTAMENTO FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE DO INSTITUTO SEDES)
ELENA
ARQUIVOS DE MEMÓRIA
Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 


A primeira coisa que me ocorre depois de assistir à Elena é uma frase (de Isak Dinesen) que há muito tempo encontrei numa epigrafe da Condição Humana de Hannah Arendt, e que guardei no meu arquivo de memória. Diz que “Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a respeito delas”. Elena, que um dia virou água ao ser tocada em sonho, ganhou narrativa. Virou uma história que foi sendo contada como quem  recupera uma obra de arte: fruto de pesquisa acerca do passado, com cuidado e delicadeza no trato do arquivo e espaço para criação para quem a faz voltar a ser inteireza e não despedaçamento. Pedaços da vida de Elena ficaram aqui e ali: num a gravação em fita K7, em VHS, em fotos e em passagens que nunca deixaram de povoar a cabeça dos que com ela conviveram. A irmã caçula cresceu e resolveu juntar tudo, numa Elena dela, e num trabalho à maneira de umas das belas letras de Chico:
“Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar”
Baús e armários, assim como a memória familiar, foi mexida e remexida. Sim, diz Roudinesco,  historiadora e psicanalista: o arquivo é condição para história, pois oferece um ordenamento da realidade. O arquivo não apenas registra-acumula-armazena coisas (memórias etc.), mas o faz de um modo determinado e assim produz também um ordenamento do e para o mundo, ordenando-nos simultaneamente, sendo a partir disso que podemos rever a realidade, interpretá-la e narrá-la produzindo sentidos para aquilo que já não é caos. Essa é a base da relação entre arquivo e história, sendo que, no fim das contas, a história acaba sendo uma exploração e a explanação do arquivo. Toda história é arquivo, mas o arquivo é apenas potencialmente história, enquanto no fundo do armário. A história também depende da possbilidade que o arquivo apresenta em sua medida e apresentação. O excesso, solapa a possibilidade de exploração e interpretação (pretende-se verdade absoluta e opca. Ao narrador resta repeti-lo numa descrição exata) e a escassez joga o narrador numa abstração particular de onde tudo pode até ser que tenha sido, mas perde ancoragem (exemplo disso é a importância dos trabalhos do projeto Fazendo história para crianças abrigadas , que, depois da adoção podem entrar em contato com como tudo começou). Voltando a falar de água, é como se o arquivo oferecesse margeamento para o fluxo do rio que é uma narrativa. O excesso engessa, a escassez faz a água perder a força e empoçar.
Os arquivos são as pistas para construção de novos sentidos para uma história. Petra já é de uma geração cujos registros fotográficos não são raros, tampouco se restringiam a momentos festivos ou eram executados, apenas, por profissionais contratados. A possibilidade de reter e armazenar imagens, sons ou movimentos, já era algo que fazia parte do cotidiano das famílias de classe média (o que um dia foi recebido com espanto e encanto nas salas de cinema e no registro dos eventos dos espaços públicos, invadira o infinito particular das famílias). Assim, Petra pode se ver bebê, pode ver as pessoas de seu cotidiano com ela se relacionando: conhece seu olhar, seus gestos e suas gracinhas, já não contando apenas com relatos orais dos familiares ou outras pessoas mais velhas que acompanharam seu crescimento (esses são outras pistas a serem juntadas às imagens). É esse arquivo que Petra vai recortando e colando gestos , sons e imagens num lugar onde tudo isso se integra muito bem: no cinema! Lugar onde sua Elena sempre quis estar.
Aqui me lembro de um vídeo, que vem sendo veiculado pelo youtube, que traz vários atores dizendo que querem conhecer Elena. Os que a tiveram em passagens em suas vidas, falam do seu fascínio, de sua liberdade  e de sua capacidade de romper com sempre-igual das coisas. Todos querem encontrar Elena, apesar de alguns até chegarem a se questionar se realmente querem. Esses últimos talvez pela consciência de que terão que seguir os passos de Petra: se aventurar na cidade proibida, traçar caminhos tortuosos, chegar perto de sua dor e encontrar seu próprio destino/sentido. Petra cresceu ouvindo: “você pode morar em qualquer lugar menos em NY. Pode escolher qualquer profissão, menos ser atriz”.
Mas, encontrar Elena onde ela nunca deixou de estar (a exemplo de Doroti do Mágico de Oz) permite que possamos, enfim, protagonizar uma história. Faço votos que cada um daqueles atores possa mesmo se aventurar na busca de suas Elenas, assim como cada um de nós, que hoje nos emocionamos com a busca que Petra, generosamente, conosco compartilha e que, inevitavelmente, nos faz questionar se queremos conhecer nossa Elena. Se a resposta for positiva, o caminho pode ser longo, mas, certamente, enriquecedor.
Eliane Brum (jornalista que chegamos a convidar para estar aqui hoje conosco, pela belíssima leitura sobre o tornar-se mulher que o filme também traz), certa feita escreveu sobre experiência de uma criança, de um pouco menos de 2 anos, que na presença de uma menina de perna quebrada, ficou totalmente tomada pelo susto da percepção de que as pessoas quebram. Pois é, as pessoas quebram e só a possibilidade de contar histórias faz com que seja suportável vivermos e convivermos com os cacos (com os nossos e com os dos outros). Do mesmo modo, para se contar uma boa história há de se ter entrado em contato com essa dura realidade da condição humana: somos quebrados e vamos “tocar” a vida assim, contando histórias uns para os outros. Histórias que, de forma mais ou menos explicita, mais ou menos angustiada, mais ou menos organizada sempre falarão de nossas Elenas e as farão permanecer vivas dentro e fora da gente.
Lembrei de que certa feita Rubem Alves disse que para ele contar histórias tinha a mesma função de que as pérolas para as ostras: as ostras na sua vidinha de ostra,muitas vezes não podem evitar que pequeninos grãos de areia entrem em suas conchas e fiquem machucando, doendo. Então, passam a produzir um perola em seu entorno para poder continuar existindo com ele dentro dela. Buscar Elena, certamente, é um trabalho de fabricação de pérola que cada um de nós terá que descobrir seus próprios processos!

quarta-feira, 11 de junho de 2014

O segredo dos seus Olhos


O Segredo dos seus Olhos

Por Ana Lucia Gondim Bastos


O segredo é o constantemente revelado pelo olhar. Terminado o filme, fiquei me perguntando se o tal segredo não seria a capacidade do olho revelar o silenciado. É o olhar de Isidoro, registrado nas fotos de adolescência, que revela-o como suspeito de um crime. Crime motivado pela paixão doentia, a paixão que faz com que não se consiga pensar o outro com existência própria, o outro longe de si... o outro como outro. O olhar apaixonado de quem quer o objeto amado estático e sem vida, como na baladinha adolescente, de outrora, que diz “e gosto dele assim: assado,cozido, fritinho enrolado, todinho para mim”! Na baladinha o que aparece num tom “fofo”, ingênuo e um tanto romântico, no filme dá margem ao estupro e assassinato de uma bela moça recém casada (com outro homem). É Benjamin, personagem de Ricardo Darín, o agente responsável pela investigação do caso. Ë ele que reconhece o olhar de cobiça de Isidoro pela colega de adolescência, nos álbuns antigos. Ao contrário do que se havia cogitado, para Benjamin, o marido nunca fora suspeito, o amor dele era de outro tipo, do tipo de quem reconhece o quanto o outro faz falta, por ser outro!
O olhar de Benjamin também denuncia um amor silenciado, o amor por sua jovem chefe. Talvez por isso ele tenha tanta facilidade de “ler” olhares. O filme se passa em dois tempos: um tempo presente, no qual Benjamin, recém aposentado, inicia a escrita de um romance baseado na história do crime há anos investigado e, paralelamente, no tempo em que o crime e a investigação ocorreram. Para escrita do romance, Benjamin volta à investigação e ao contato com Soledad, sua ex chefe. Numa noite, desse segundo momento de investigação, uma palavra lhe ocorre logo que acorda: TEMO. No decorrer do filme uma maquina de escrever do tempo da primeira investigação reaparece e é lembrada a falta da letra A, que acompanhou os registros daquele momento, naquele departamento de justiça. Benjamin, então, é capaz de desvendar o enigma da palavra solta na noite (e na história). TEMO, transforma-se em TE AMO. Tantos anos do temor de amar, tantos anos de amor silenciado, tantos anos de olhares reveladores. Talvez agora, Benjamin sinta-se mais preparado e maduro para amar. Um amor que considera o outro,  e que sabe que não será fácil (porque nunca o é quando a história, desejos e demandas do outro é considerada), mas poderá ganhar muitos outros sentidos! Outra dupla do enredo não é capaz de se desprender das amarras da paixão doentia, mas essa parte fica para quem topar assistir ao filme.
Lindo filme, lindo final!

terça-feira, 10 de junho de 2014

Água Negra



Água Negra
Por Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 


O suspense vivido por todos nós: a possibilidade de fantasmas de criança, desaparecidos nas estradas da vida, retomarem sua força e reaparecerem com cores do presente, em função de novos acontecimentos, novos cursos da vida. É isso que tira o fôlego tanto na versão japonesa, de Koji Suzuki (2002), quanto no remake americano, dirigido por Walter Salles (2005), de Água Negra. De um tempo para outro; de um andar para outro; da realidade interna para realidade externa; de uma história para outra... vazam água, sentidos e afetos, turvando a visão de quem tenta escrever uma nova história, num novo momento de vida.
Vazamentos de histórias/sentimentos de abandono, do outro que esquece, que não se importa, que te rechaça e te deixa no desamparo. A vulnerabilidade de uma criança de cinco anos que fica a espera na porta da escola, sem autonomia ou qualquer aparato de ordem objetiva ou subjetiva para dar conta da questão, é esse o verdadeiro terror do qual o roteiro trata.
 Dahlia (na versão americana) não é mais aquela menininha que esperava a mãe alcoolatra, na porta da escola. Agora, ela já é mãe. Mãe de Ceci, uma menininha que nem tem medo de ser esquecida!  Mãe e filha estão de mudança, após o divórcio do casal de pais de Ceci. O pai insiste que Ceci (ou Ikoku, na versão japonesa) deve ficar mais perto dele e justifica o fato pela desconfiança de que a mãe apresenta uma fragilidade de organização psíquica, Dahli insiste que isso ficou no passado e que a relação com a filha a fortalece. Mas, é a partir do momento no qual se vê pressionada a ter que dar conta – e mostrar que dá conta - de suas questões em momento de mudança e das questões da filha, que a fragilidade dessa organização começa a se manifestar. A menininha esquecida volta a reclamar seu lugar. Começa a tomar conta da cena, a transbordar e a fazer do novo lar, dividido por Dahlia e Ceci, um lugar onde se escuta vozes do passado, onde uma criança que não foi cuidada pela mãe impede que Dahlia cuide da filha ou que Ceci possa construir uma história ao lado da mãe e de novos amigos de escola. O fantasma passa a dominar (e assombrar) as duas: mãe e filha. “Vaza água do meu teto”, diz  a mãe cada vez mais acuada com as desconfianças do ex marido de que tal vazamento esteja transbordando sobre a filha, impactando em sua saúde mental. Enquanto isso, a história de um desaparecimento de uma criança do prédio vai sendo desvendada e, quem sabe, se separando da história de Dahlia. Ela segue lutando para poder cuidar de sua filha, como nunca foi cuidada e para descobrir o que acontecera com a menina sumida que desistiram de procurar. Nesses processos passa a poder pedir ajuda para dar conta dos vazamentos e até encontra boas parcerias, contudo, à essa altura, o fantasma de uma história já se condensou à dela e, como diz o poeta, “sabe lá, o que é não ter e ter que ter pra dar!”
Sem dúvida, as duas versões de Água Negra,  são filmes mais tristes que assustadores e mais delicados que aterrorizantes. Vale à pena assistir!

onde tudo começa...


Desde criança me interesso por histórias das vidas das pessoas. Era daquelas crianças que ficava imaginando como seria morar num iglu ou numa tribo indígena. Me divertia pensando o que outras crianças estariam fazendo naquele exato momento, como seriam suas famílias, seus brinquedos preferidos e seus sonhos... Também sofria imaginando que muitas delas sentiam a falta de tudo isso, pois já tinha percebido que pra muita gente faltava família, brinquedos e sonhos! Depois, mais velha, tinha como brincadeira frequente (principalmente em ambientes como aeroportos e rodoviárias) imaginar para onde aquelas pessoas que passavam iam, se estariam felizes ou tristes com as partidas e chegadas, e, inventava verdadeiras novelas, observando expressões, bagagens e gestuais. Adolescente já adorava cinema e os personagens de alguns filmes e diretores também ganhavam vida, e novas histórias, nas minhas demoradas análises. Quando precisei escolher uma profissão, não tive muita dúvida: resolvi ser psicóloga e, depois, estudar psicanálise. Hoje, tenho 18 anos de clínica, duas filhas adolescentes, um livro infantil publicado, alunos, supervisionandos, sobrinhos e muita história rolando “de dentro pra fora e de fora pra dentro”. E é justamente sobre esse bailado, sobre esse entra e sai, que o blog vai tratar: vai ter espaço pro lido, assistido, inventado, experienciado, cantado ou ouvido. Tudo do jeito que foi processado, com todo e com nenhum compromisso com fatos reais. Essa é a verdade verdadeira: a verdade que entra por uma porta e sai por outra e, quem quiser, que conte outra!