A estranha mania: onde Blade Runner encontrou Her
Por Ana Lucia
Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/
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Quando, em 2014, assisti ao filme "Her" (Spike
Jonze, 2013), então o ganhador do Oscar de melhor roteiro, me ative nas
reflexões acerca dos facilitadores de
investimentos narcísicos, apresentados pelo universo da virtualidade. No filme
de ficção científica, passado num futuro próximo, o personagem interpretado por
Joaquim Phoenix se apaixona por um novo sistema operacional inteligente,
instalado em seu computador. O sistema, para o qual foi selecionada uma voz
feminina (a voz de Scarlett Johansson), passa a fazer parte da vida do
protagonista, de forma tão intensa e satisfatória, que vai restringindo as
relações do personagem com o resto do mundo, ou melhor, vai transformando tais
relações, já que essas passam a ter mais sentido pela presença constante, e ao
alcance das mãos, da doce voz de Scarlett, sempre com boas e oportunas ideias
(até porque sempre adequadas aos gostos e interesses de seu usuário).
Reflexões semelhantes me ocorreram
quando assisti ao filme "Blade Runner" (Ridley Scott, 1982), há anos atrás, época na
qual 2019 me parecia um futuro bem distante. O Caçador de androide,
interpretado por Harrison Ford, era o retrato da solidão e da dificuldade da
troca de experiências significativas, num mundo de relações sociais esgarçadas,
relações de poder marcadas por um colapso ético e definidas em função de
interesses meramente mercadológicos.
Mundo no qual replicas perfeitas de humanos e animais são construídas
para servir a parcela privilegiada de humanos que vão se aventurar em colônias
extraterrestres, já que o planeta Terra já se configura um grande rastro de
destruição e decadência civilizatória.
Talvez por ter tais futuros (o
desenhado por Jonze e o por Scott) tão próximos - na verdade, colados ao
presente - talvez pela necessidade de abrir espaço para criatividade e para a
esperança nesses tempos, quem sabe pela necessidade de continuar acreditando
que todas as lutas, travadas no passado, por um futuro melhor não foram em vão
ou, ainda, por todas as alternativas anteriores, me peguei relacionando esses
filmes de forma diferente. Esta semana, semana de tantas notícias e postagens
carregadas de raiva e de informações acerca de trágicos eventos motivados pela
intolerância que autoriza o desejo e a ação de gente “deletar” gente (talvez da
mesma forma que os caçadores de androides de Scott não se percebiam matando,
mas, sim, retirando replicantes), volto a assistir Blade Runner e acabo com uma
sensação, surpreendentemente, boa. Penso na cena do personagem de Ford olhando
para sua Rachel, olhar que a humaniza por considerar suas memórias e seus
sentimentos, cultivados a partir daí (apesar de saber se tratar de uma memória
implantada, foi por ela apropriada e, então, é dela e a faz capaz de se
emocionar). Na mesma hora me vem a imagem do personagem de Phoenix desolado ao
perceber que sua Johansson nunca vai poder oferecer a reciprocidade do amor a ela devotado, já que ele é apenas mais um usuário do sistema e ela não tem corpo ou memória
afetiva.
Então, se o ser humano tem a estranha mania de não desistir de ser
cada vez mais poderoso, sempre ansioso por aumentar seu domínio sobre tudo e
todos, ele, também, tem uma capacidade empática que, muitas vezes, o faz parar
no olho no olho com alguém, que o faz sofrer pelo outro, que o faz querer ajudar alguém em
quem reconhece a dor, que o faz querer ser amado não por sua força, mas pelo
reconhecimento de sua própria capacidade de amar. Enfim, que o faz portador,
também, de uma estranha mania de ter fé na vida! Sendo assim, sigamos lutando
por um mundo melhor e mais solidário!