sexta-feira, 13 de março de 2015

A estranha mania: onde Blade Runner encontrou Her


A estranha mania: onde Blade Runner encontrou Her
                                  Por Ana Lucia Gondim Bastos 
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Quando, em 2014, assisti ao filme "Her" (Spike Jonze, 2013), então o  ganhador do Oscar de melhor roteiro, me ative nas reflexões acerca dos facilitadores  de investimentos narcísicos, apresentados pelo universo da virtualidade. No filme de ficção científica, passado num futuro próximo, o personagem interpretado por Joaquim Phoenix se apaixona por um novo sistema operacional inteligente, instalado em seu computador. O sistema, para o qual foi selecionada uma voz feminina (a voz de Scarlett Johansson), passa a fazer parte da vida do protagonista, de forma tão intensa e satisfatória, que vai restringindo as relações do personagem com o resto do mundo, ou melhor, vai transformando tais relações, já que essas passam a ter mais sentido pela presença constante, e ao alcance das mãos, da doce voz de Scarlett, sempre com boas e oportunas ideias (até porque sempre adequadas aos gostos e interesses de seu usuário).
Reflexões semelhantes me ocorreram quando assisti ao filme "Blade Runner" (Ridley Scott, 1982), há anos atrás, época na qual 2019 me parecia um futuro bem distante. O Caçador de androide, interpretado por Harrison Ford, era o retrato da solidão e da dificuldade da troca de experiências significativas, num mundo de relações sociais esgarçadas, relações de poder marcadas por um colapso ético e definidas em função de interesses meramente mercadológicos.  Mundo no qual replicas perfeitas de humanos e animais são construídas para servir a parcela privilegiada de humanos que vão se aventurar em colônias extraterrestres, já que o planeta Terra já se configura um grande rastro de destruição e decadência civilizatória.
Talvez por ter tais futuros (o desenhado por Jonze e o por Scott) tão próximos - na verdade, colados ao presente - talvez pela necessidade de abrir espaço para criatividade e para a esperança nesses tempos, quem sabe pela necessidade de continuar acreditando que todas as lutas, travadas no passado, por um futuro melhor não foram em vão ou, ainda, por todas as alternativas anteriores, me peguei relacionando esses filmes de forma diferente. Esta semana, semana de tantas notícias e postagens carregadas de raiva e de informações acerca de trágicos eventos motivados pela intolerância que autoriza o desejo e a ação de gente “deletar” gente (talvez da mesma forma que os caçadores de androides de Scott não se percebiam matando, mas, sim, retirando replicantes), volto a assistir Blade Runner e acabo com uma sensação, surpreendentemente, boa. Penso na cena do personagem de Ford olhando para sua Rachel, olhar que a humaniza por considerar suas memórias e seus sentimentos, cultivados a partir daí (apesar de saber se tratar de uma memória implantada, foi por ela apropriada e, então, é dela e a faz capaz de se emocionar). Na mesma hora me vem a imagem do personagem de Phoenix desolado ao perceber que sua Johansson nunca vai poder oferecer a reciprocidade do amor a ela devotado, já que ele é apenas mais um usuário do sistema e ela não tem corpo ou memória afetiva.
Então, se o ser humano tem a estranha mania de não desistir de ser cada vez mais poderoso, sempre ansioso por aumentar seu domínio sobre tudo e todos, ele, também, tem uma capacidade empática que, muitas vezes, o faz parar no olho no olho com alguém, que o faz sofrer pelo outro, que o faz querer ajudar alguém em quem reconhece a dor, que o faz querer ser amado não por sua força, mas pelo reconhecimento de sua própria capacidade de amar. Enfim, que o faz portador, também, de uma estranha mania de ter fé na vida! Sendo assim, sigamos lutando por um mundo melhor e mais solidário!

terça-feira, 10 de março de 2015

Asas do Desejo


Asas do Desejo
                                           Por Ana Lucia Gondim Bastos
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Desde a época que éramos bípedes da savana - nos lembram os anjos de Asas do Desejo – um ou outro de nós, quem sabe um grupo ou outro de nós, corria em zigue zague seguido por pedras atiradas de longe. Assim, pelo menos nos contam os anjos de Win Wenders (1987), as guerras costuram nossas histórias, fazendo-as comportarem respeitáveis doses  de destruição, de separações, de medos, de inseguranças, de desconfianças, de ódio e desalento. O vazio existencial, a solidão, a vulnerabilidade da condição humana e as imperfeições da vida que sabemos sustentar a guerra e a paz, nos atordoam e afligem. Nos confundem pensamento e roubam momentos de satisfação. Enquanto isso anjos passeiam entre nós, sem que os percebamos, testemunhando nossas dores, apoiando nossas cabeças caídas num momento de desesperança ou nos ajudando a suportar o peso dos ombros exaustos. Nesse contexto de tantas repetições e talvez poucas mudanças, no universo preto e branco de quem não sente o peso dos ossos e o cansaço do corpo, um anjo percebe-se encantado com o universo de quem, com tudo isso, espera o amanhã, se alegra num dia de domingo tranquilo, ama pessoas e com elas estabelece vínculos afeto que lhes aquece o coração. Se diverte no circo ou é trapezista que encanta o público que se deixa iludir confiando na leveza e na facilidade de voar do artista. Esquenta as mãos esfregando uma na outra, suspira de prazer tomando um chocolate quente numa tarde fria, faz filmes para contar histórias pros outros e escolhe roupas e chapéus para sair às ruas. Uma vida de colorido ímpar! Uma vida que vale experimentar, mesmo que o custo seja a consciência de que um dia acaba. Um anjo se joga para experimentar e Win Wenders nos presenteia com diálogos densos que, em muitos momentos, no faz recebe-los num fôlego só. Um filme que fala sobre o peso da existência humana em forma de poesia, que é como podemos dar conta dele.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Entre ontem e amanhã: Meia Noite em Paris


Entre ontem e  amanhã: Meia Noite em Paris
Por Ana Lucia Gondim Bastos
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Entre o passado e o futuro encontra-se um tempo menos passível de idealizações, entretanto, o único efetivamente fértil para realizações. O futuro pode ser imaginado de diversas formas, tendo a passagem de um cenário idealizado a outro, sempre facilitada. É nele que projetamos encontrar o algo que, ao alcançarmos, poderá nos fazer “felizes para sempre”. Ao contrário do que propõe a poesia de Cecília Meireles “Ou Isso ou Aquilo”, o futuro é um tempo no qual o isso, o aquilo e muitos mais aquilos outros convivem e se alternam sem maiores compromissos com as leis da física. Uma hora posso me imaginar viajando pra China e logo em seguida me imaginar na Califórnia, posso vir a falar várias línguas ou conquistar qualquer título ou prêmio. Na hora da realização, no entanto, se faz preciso considerar os limites do tempo, do corpo, do mundo, das  relações, das habilidades e competências de quem vai priorizar o que realizar. É, justamente, aí que  o “Ou Isso ou Aquilo” se impõe, por vezes, de forma dolorosa. Uma dor que, quando enfrentada, pode anteceder a satisfação da realização do possível, realização do que se compartilha e do que promove transformações nos mundos externo e interno do seu responsável. Nesse processo, novos sonhos e objetivos vão ganhando contorno e o sentido da vida vai sendo renovado, sempre no presente. Assim, apesar da esperança habitar o por vir, ela só pode ser renovada no aqui e agora de cada história.
E quanto ao passado, o que podemos falar? O passado é um tempo passível de edição, de utilização de uma espécie de Photoshop da memória. É isso que nos faz nos orgulhar enormemente do que acontecia e do como as pessoas se relacionavam “no nosso tempo”, como se nosso tempo não fosse o presente, ou melhor, como se o presente não fizesse parte de um tempo que é nosso, tão nosso quanto o que já foi ou o que vai vir a ser, até que a morte nos separe da vida entre os homens. Da mesma forma, muitas vezes, tal idealização nos faz achar que nascemos no tempo “errado”. Pensamos que tudo seria diferente e mais promissor se estivéssemos num tempo anterior ao do nosso nascimento, com certeza, tempo de maior fartura e produtividade intelectual. Tempo que não comportava o vazio existencial que, tantas vezes, o presente comporta por considerarmos a vida insatisfatória ou por termos dificuldade de nos conformarmos com o fato de que a felicidade absoluta e plena só pode fazer parte da vida como abstração. Esse é o tema do brilhante e delicado “Meia Noite em Paris” (2011) , primeiro filme da série de roteiros nos quais Woody Allen dedicou-se a levar seus personagens para passear para fora dos domínios dos grandes centros urbanos dos Estados Unidos. Nele, Gil Pender (personagem interpretado por Owen Wilson), um roteirista com espaço já conquistado nos estúdios hollywoodianos e prestes a casar com uma bela moça de uma rica e conservadora família americana, tem, em uma viagem a Paris, a oportunidade de busca de referencias e inspiração para a mudança de rumo de sua trajetória que, há tempos, o vinha incomodando. Inicialmente, tais oportunidades acontecem em visitas ao passado parisiense, numa espécie de mágica que desresponsabiliza Gil do processo. Aos poucos tais visitas vão sendo entendidas e tratadas, pelo próprio protagonista, como fugas ao passado que, como tal, só poderiam condena-lo a um ciclo de repetição sem fim, não oferecendo chance alguma para o novo se manifestar no presente, única morada da esperança e espaço onde o encontro transformador com o outro pode acontecer. Numa história bem contada, com participações de personagens como Buñuel, Dali, Toulouse, Cole Porter e Picasso, no cenário encantador da Paris de todos os tempos e embalados por uma trilha sonora maravilhosa, impossível não projetarmos novas viagens a tempos e lugares de sonho. Se tais projetos ficarão no passado, no futuro ou entre o passado e o futuro, assim como, a serviço do que colocaremos tais projetos, fica a cargo de cada um, condicionados pelo o que estabelecemos como condutores de nossas narrativas. Seja qual for seu caso, Bon Voyage!