quinta-feira, 19 de junho de 2014

Scola Conta Fellini: Que Estranho Chamar-se Federico


Scola Conta Fellini: Que Estranho Chamar-se Federico
                                                   por Ana Lucia Gondim Bastos



Um documentário que é uma verdadeira ode à amizade, só podia virar poesia. É verdade que falar de Fellini, buscando as verdades dos fatos objetivos, não combinaria com o próprio Fellini, que teve vida e obra encharcadas de fantasias. “A certeza, acaba com a inspiração”, certa vez a dupla de amigos, Scola e Fellini, ouviu, de um artista de rua, num dos muitos passeios de carro que faziam, rodando e dando caronas para personagens das madrugadas romanas. Vai ver que era por isso que Fellini era tão inspirado: a verdade não parecia ser algo com o qual o diretor de “E la nave va”, “Julieta dos Espíritos” e tantas outras obras primas do cinema, se preocupasse muito. Viver constantemente em um universo onírico, parecia não incomodá-lo. Ou o incomodava tanto que ele nem conseguia dormir! Nas muitas noites de insônia saia por Roma, dirigindo seu carro, para sonhar acordado e depois... tudo virava filme de fazer a gente, na sala do cinema, pensar que estava entrando no sonho alheio, sonho este que, inevitavelmente, invadiria os nossos! E é nesse clima onírico e de mistura de tintas e traços que Scola vai contando a história dele com Fellini. Isso mesmo, o documentário  é mais do que sobre Fellini, é sobre uma história de amizade, admiração e parceria. É um relato da experiência de um encontro, de olhares, de generosidade e de gratidão. Gratidão que devemos ter a todos que nos permitem que nossa vida seja uma história para ser contada, em especial, àqueles que escolhemos e, pelos quais, somos escolhidos, pelos caminhos da vida, como personagens de episódios importantes das nossas narrativas. Gratidão por terem aceito o papel que oferecemos na nossa história, gratidão por todo material que trouxeram para essa história e, também, por aceitarem que nossas histórias se entrelacem a deles e se transformem mutuamente. Todo ser humano, carrega a certeza do final de sua história: o protagonista morre no final. Então, a tarefa árdua de cada um é fazer o meio do caminho (que a gente nunca sabe a duração, o que deixa a tarefa ainda mais complicada) bem interessante, a exemplo de Sherazade. Espera aí! Se eu citei o artista romano que diz que a certeza acaba com a inspiração e se chego à conclusão que somos todos Sherazades, adiando a morte... como ter certeza absoluta do final? Quem sabe a gente não acabe como Federico de Scola?

terça-feira, 17 de junho de 2014

Baú de Histórias


Baú de histórias



(Para Mariana Garcez, para quem e por quem tanta história foi contada)
 Ana Lucia Gondim Bastos

novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 

De um baú pintado a mão, lá pelos lados do oriente, saem histórias e poemas sempre que preciso oferecer um contorno mais preciso para um sentimento ou experiência vivida. Uma das minha preferidas intitula-se “Dona Saudade”, de Claudia Pessoa. O livro de capa azul, da cor do meu baú, conta a história de Fernando, que depois de muito correr e se assombrar com a danada da Dona Saudade, abriu o coração, deixou-a entrar e descobriu que, quando acolhida, Saudade fica levinha como nuvem sem chuva.
Mas, sei bem que lidar com saudade não é coisa fácil! Ela é incômoda e desastrada, sempre que a gente deixa ela entrar, ela esbarra em tudo que está pelo caminho e, muitas vezes, deixa um tanto de coisa quebrada dentro da gente! E, olha que dá um trabalhão recolher os cacos que ficaram espalhados, para dar novos contornos pra eles. Mas, a vida de quem gosta de se relacionar, de trocar afeto e  de ver o outro crescer, ganhar asas e voar, é vida de quem “topa” conviver com dona Saudade. Vida sem saudade, é vida solitária, vida sem laço ou abraço. Mario Quintana fala bem disso (aliás, ele fala bem de tudo quanto há nessa vida!):

O LAÇO E O ABRAÇO
Meu Deus! Como é engraçado!
Eu nunca tinha reparado como é curioso um laço... uma fita dando voltas.
Enrosca-se, mas não se embola, vira, revira, circula e pronto: está dado o laço.
É assim que é o abraço: coração com coração, tudo isso cercado de braço.
É assim que é o laço: um abraço no presente, no cabelo,
no vestido, em qualquer coisa onde o faço.
E quando puxo uma ponta, o que é que acontece? Vai escorregando...
devagarzinho, desmancha, desfaz o abraço.
Solta o presente, o cabelo, fica solto no vestido.
E, na fita, que curioso, não faltou nem um pedaço.
Ah! Então, é assim o amor, a amizade.
Tudo que é sentimento. Como um pedaço de fita.
Enrosca, segura um pouquinho, mas pode se desfazer a qualquer hora,
deixando livre as duas bandas do laço.
Por isso é que se diz: laço afetivo, laço de amizade.
E quando alguém briga, então se diz: romperam-se os laços.
E saem as duas partes, igual meus pedaços de fita, sem perder nenhum pedaço.
Então o amor e a amizade são isso...
Não prendem, não escravizam, não apertam, não sufocam.
Porque quando vira nó, já deixou de ser um laço!


Então, amar é, também, deixar ir e permitir a volta. É gostar de ouvir as histórias dos outros e não achar que tem um jeito só de contar uma história. É, também, gostar de contar do nosso jeito de escrever história, e ficar feliz quando o outro se interessa, porque, no fundo, somos tramas e urdiduras de um mesmo tecido. Tecido formado de idas e vindas, de encontros, desencontros e reencontros, de saudade e de reparação.
Todos os papéis que escolhi exercer na vida (tanto quanto a forma através da qual escolhi exercer), me fazem, de modo particularmente intenso,  lidar com encontros e despedidas. Saudade, assim, se tornou minha grande companheira. Da mesma forma que Fernando (personagem de Claudia Pessoa), aprendi a acolhe-la e até a convoca-la, em algumas situações. Seu jeito desastrado, às vezes, chega a me divertir e sabendo que ela carrega todo mundo a tira colo e me preenche com tantas histórias que compartilhei com toda aquela gente, fica mais fácil acompanhar com olhar atento cada um que alça voo até que eu o perca de vista no horizonte distante.
Saudade, inclusive, hoje me instrumentaliza a manter a janela aberta para cada um que resolva voltar para descansar as asas, fortalece-las, ou mesmo, só para contar as histórias das terras por onde passou. E é assim que eu levo a vida, e é assim que dou sentido à ela: com a convicção de que o baú de histórias estará sempre com o espaço ampliado a cada nova contribuição!

domingo, 15 de junho de 2014

Malévola ou o amor verdadeiro não cai do céu

                                  Malévola ou o amor verdadeiro não cai do céu
                                                                     (para Julia Garcez, com amor verdadeiro)
                                                                                    Por Ana Lucia Gondim Bastos
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  O amor verdadeiro existe ou não? Malévola chega a acreditar que não. Ela é vítima da traição do amigo, cuja ambição já os havia separado. Stefan - o amigo que, num primeiro momento, joga longe o anel que poderia machucar a amiga fada e,  anos depois, dá-lhe um beijo que diz ser expressão de amor verdadeiro – não é capaz de matá-la para conseguir a coroa sonhada, mas é capaz de a mutilar, condenando-a a nunca mais alçar voo. Malévola, nesse percurso, perde mais que asas, perde a esperança, a alegria e a fé nas relações. Se cerca de espinhos e transborda de dor e ódio. É dela que vem a maldição que fará a princesa Aurora dormir o sono eterno, ao completar 16 anos (a mesma idade de Malévola quando esta achou ter conhecido o beijo do amor verdadeiro). Também é dela a profecia que essa maldição só poderia ser quebrada com um beijo fruto do tal amor verdadeiro, antidoto à existência desacreditada. Mas é Stefan que definha sem poder lidar com os lugares para os quais sua ambição o levou. O menino que joga o anel de ferro (que queima as fadas) longe para proteger sua amiga, termina o filme com uma armadura de ferro cobrindo-lhe o corpo inteiro, armado até os dentes. Um homem que foi se distanciando de sua capacidade de amar, de oferecer porto seguro e de aceitar gestos de carinho e generosidade. Seu propósito de vida era morar no castelo e o preço pago seria se encastelar narcisicamente, se protegendo do contato, levantando muros para toda a afetividade que pudesse atrapalhar este seu propósito.  O amor, e a consequente percepção da importância do outro em nossa vida, não nos permite pagar qualquer preço por ganhos narcísicos e Stefan, então, não podia cultivar tal sentimento. Precisava, sim, se defender desse sentimento que o tornava mais vulnerável, depois, precisou se defender de toda a culpa por tudo o que precisou ocasionar para atingir seu objetivo, e muros cada vez mais altos foram se erguendo, e o ódio cada vez mais projetado para fora de seu encastelamento narcísico: Malévola foi o alvo da traição e, depois, do ódio projetado. Nessa relação apaixonada que fez um viver para o outro durante muito tempo (seja para a vingança, seja para dar vazão ao ódio), abre-se uma brecha, pelo menos para Malévola, com a entrada de um terceiro personagem: a princesa Aurora. Malévola acompanha o crescimento de Aurora e os cuidados que começa a oferecer à pequena princesa vão distraindo- a de seu ódio. Um corvo, que se torna fiel a ela, também vai fazendo com que, aos poucos e sem que ela possa se dar conta num primeiro momento, Malévola vá construindo relações amorosas e, na contramão do que vai acontecendo com Stefan, vá se desarmando para o outro e, consequentemente, para o amor.
Mas, o amor tratado aqui, não é o amor romântico, aquele amor à primeira vista, aquele amor de alma gêmea. Trata-se de um amor fruto de uma construção que precisa de tempo e espaço para acontecer. Realiza-se mediante a trocas significativas de cuidados, ideias e afeto, entre as pessoas. Acontece de maneira dialógica e numa narrativa e, portanto, exige convivência, exige tolerância e exige disponibilidade e abertura para o outro. É esse amor que Malévola volta a sentir e que lhe devolve as asas, a alegria e a esperança. É desse amor que Stefan se distancia de um jeito tal que nem ao menos lhe permite alegrar-se com o reencontro com sua filha. Finalmente, às nossas crianças e adolescentes não é apresentada uma versão da vida na qual a princesa espera, deitada e de olhos fechados, que algum príncipe se encante com sua beleza e a beije transbordante de amor verdadeiro.  O amor verdadeiro é construído, cultivado e conquistado e, o mais importante, não é privilégio de pares românticos. No último desenho da Disney – Frozen – o amor entre as irmãs foi o que as salvou para uma vida livre do gelo que as imobilizava. Agora, o filme Malévola trata do amor de quem cuida, acompanha e vê crescer, desmistificando a naturalização, inclusive, do amor materno/paterno.
Malévola que, enfim, volta a acreditar no amor verdadeiro, só nos ajuda a não nos convencermos mais de que este cai do céu!
E para quem ficou curioso onde é que o bonitinho do príncipe Philip entra nessa história: entra com a princesa Aurora Já acordada e com muita vontade de conhecê-lo melhor!