terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Trem Noturno para Lisboa



Trem Noturno para Lisboa
                             Por Ana Lucia Gondim Bastos

Porque a direção da vida está nas mãos do acaso, o professor suíço Raimund, personagem de Jeremy Irons em “Trem Noturno para Lisboa” (Bille August, 2013),tem seu caminho a mais um dia de trabalho atravessado pela oportunidade de salvar uma vida. A moça, que tem seu projeto de suicídio impedido pelo professor, deixa poucas pistas de sua história. Contudo, é através desse encontro que Raimund acaba por ter nas mãos o  livro do português Amadeu Almeida Prado, cuja leitura é estopim para se deixar levar numa busca pelo seu sentido de vida perdido. É justo dentro do livro, que lembra que o acaso rege a vida, que Raimund encontra uma passagem de trem para Lisboa e, então, passa a ter como interesse central de sua vida, há tempos sem interesse central, a busca por conhecer aquele autor que fala da morte e da finitude como dando beleza e horror à vida. Estrangeiro na terra de quem tocou tão fundo sua alma, Raimund tem seus óculos quebrados e novas lentes começam a pesar menos em seu rosto iluminado pelo interesse de desvendar uma história. A história, na qual começa a entrar, tem registros truncados de difícil junção, como tantas histórias de pessoas que resistiram a ditaduras (no caso a salazarista), mas cada fragmento vem cheio de emoção, convicção e sentimento de vida vivida com intensidade e fervor. O roteiro nos intriga e nos absorve como se estivéssemos frente a um quebra cabeça de mais de mil peças. Cada novo encaixe revela uma surpresa no que diz respeito à imagem que vai se formando. Imagem que vai remetendo Raimund a profundas reflexões existenciais e a encontros transformadores. Impossível não sermos tomados por essas reflexões, ainda mais às vésperas de um ano novo! Amadeu diz que contava os dias para que eles não o esmagassem. Talvez seja por isso que tenhamos que encerrar anos e recomeçar outros, contando o tempo para melhor lidar com ele, sem que o peso da incerteza do que estar por vir pese como chumbo em nossas costas. Ao contrário, precisamos que tal incerteza se banhe de esperança nos bons encontros e nas histórias de amor que ainda vamos viver. Que estejamos sempre prontos para trocar nossas lentes, quando estiverem pesando muito em nossos rostos, e que estejamos sempre prontos para embarcar em viagens que nos proporcionem novos encontros, outras paragens e trilhas alternativas. Feliz 2015! 

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

LOLITA


LOLITA
Por Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 

Ainda não havia lido o livro de Nabokov (1955), tampouco assistido às produções cinematográficas baseadas em seu texto (Stanley Kubrick, 1962 ou Adrian Lyne, 1998), apesar de saber da existências das obras. Tinha, apenas, a informação, bastante difundida e já de apropriação popular, que o nome Lolita  passara a servir para adjetivar adolescentes sexualmente precoces e provocantes, em função da protagonista dessa história. Há pouco peguei o filme para assistir, no caso o de Kubrick, e fiquei bastante surpresa com as impressões que tive sobre o roteiro.
Lolita, apelido de Dolores Haze, bela adolescente, órfã de pai há sete anos , vivia só com a romântica mãe, Charlotte, que sonhava em voltar a ter um companheiro. Era uma adolescente como tantas outras, em situações análogas. Sem a figura paterna desde os 5 anos e com a sexualidade adolescente aflorando, além do exibicionismo, da beleza e do frescor, característicos dessa fase da vida, se interessava, especialmente, por chamar a atenção de homens mais velhos. Isso gerava uma dinâmica familiar tensa, ainda mais somado à  uma competição com a mãe que era agravada pela busca ansiosa de Charlotte por  possíveis pretendentes. Contudo, as coisas começam a piorar e a ganhar tom de suspense, quando um professor quase quarentão, decide alugar um quarto na casa da dupla, já por conta de um encantamento pela adolescente. Encantamento este que tomará proporções fora de controle e de qualquer registro de razoabilidade, quando, por exemplo, casa-se com Charlotte para estar mais perto de Lolita ou planeja formas de se livrar de Charlotte para se manter, a sós, na casa com Lolita. Na narrativa, a perspectiva do professor Humbert é a privilegiada, então, fica fácil para o espectador ter justificado o encantamento do professor por uma e sua impaciência com a outra. Mas, no decorrer do filme, a paixão doentia vai ficando evidente, inclusive, para os personagens envolvidos na trama. Humbert, depois da morte de Charlotte, tenta blindar Lolita do mundo, busca desesperadamente suprir todas as suas demandas e ser o único alvo de desejo da bela e, obviamente, imatura moça. Assim, presa numa dinâmica familiar incestuosa, a adolescente tem poucas chances de relações saudáveis com o resto do mundo e vive a ambivalência entre querer e não querer escapar daquela situação, difícil de se imaginar sem desfecho trágico!
Sem dúvida, a trama é um “prato cheio” para um roteiro cinematográfico, ainda mais nas mãos de um cineasta como Kubrick que mostrou ter grande apreço por esse tipo de suspense psicológico, ao longo de toda a sua filmografia. Contudo, o que mais me surpreendeu foi o peso que Lolita ainda hoje carrega nas costas. Pouco, ou nada, se fala da loucura de Humbert que recai sobre a vida de Lolita. Ela continua sendo aquela que seduz e tira o juízo dos homens. Nunca ouvi falar da desproteção da qual era vítima, desde o início da trama e que vai se agravando no decorrer da narrativa.
Acho que isso se deve, em grande medida, à concepção machista e patriarcal, organizadora e mantenedora de todo um status quo que até hoje se sustenta em nossa sociedade ocidental, que  coloca uma clara oposição ente o caminho virtuoso da mulher que se dedica à maternidade e as possibilidades de experiências eróticas femininas. A mulher desejante, portanto, aproxima-se à figura do mal, do perigo e da dominação diabólica e desse julgamento não escapam nem as adolescentes! Talvez, Lolita seja  uma dessas figuras que continuamos permitindo que sejam queimadas vivas ou apedrejadas em praça pública como exemplo do que acontece com mulheres que possam colocar em risco os imperativos de tal ordem patriarcal. Injustiça com ela, representante de tantas mulheres e adolescentes e, num aspecto diferente, com Humbert que, em termos de construção de personagem, é riquíssimo e acaba sendo pouco discutido.

sábado, 27 de dezembro de 2014

De volta ao País das Maravilhas


De volta ao País das Maravilhas
Por Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 
A ideia da continuidade entre realidades internas e externas, por estas não possuírem uma fronteira linear e rigidamente demarcada, é uma constante nos filmes de Tim Burton (como numa fita de Möbius, que ao ser torcida antes de ter as pontas ligadas, produz uma curva fechada com um único lado).
A história de uma Alice que volta, aos 19 anos, ao País das Maravilhas, lugar visitado algumas vezes durante a infância e que sempre deixou dúvida quanto a dimensão na qual existia, nos faz conhecer as imagens de Tim Burton para os personagens criados por Lewis Carrol (1864), em seu romance, inicialmente, intitulado Alice’s Adventures Underground (título que me parece bem mais adequado às apropriações Burtinianas).
No momento em que Alice parece ter um único caminho a seguir, caminho pré estabelecido socialmente como evidência de sucesso na vida – qual seja, o caminho do casamento que, para ela, não parecia nem muito animador, nem fonte de projetos estimulantes -  a personagem não vê outra solução ou remédio a não ser a de pedir um tempo para se ausentar dos olhares de todos que aguardam ansiosos por mais esse SIM, que não abalará certezas ou colocará em xeque o status quo. Um tempo para mergulhar no buraco do coelho mediador entre os mundos (o de dentro e o de fora), mergulho que a fará conhecer as forças ambivalentes em jogo em todas as nossas decisões, sempre acompanhada pelo chapeleiro maluco, aquele não tem medo de perder a cabeça e, portanto, não precisa fingir ser quem não é para fazer parte da corte. É, essa é a aventura de todo processo decisório maduro e que nos leva a caminhos de realizações significativas em nossas histórias. Como em toda aventura, é preciso enfrentar monstros e reconhecer limites, desejos e possibilidades – o que nos faz nos perceber potentes para algumas mudanças e conformados com algumas impossibilidades impostas, seja pelo princípio da realidade, seja por termos nos tornado aquela pessoa e não outra. Tudo isso requer muita força e abertura para, por vezes, descobrir que a resposta será outra, além da esperada por todos e, em alguma medida, por nós mesmos. É claro que sempre é mais tranquilo quando queremos o que é esperado de nós, mas, também é evidente que nem sempre isso é possível! O buraco do coelho da Alice é um lugar que todos nós conhecemos e está à nossa disposição. Para quem  resiste em revisita-lo, desde a infância, sugiro que não perca a próxima oportunidade! As decisões que tomamos depois dessas empreitadas são sempre muito mais fáceis de nos satisfazerem pelo simples fato de nos responsabilizarmos por elas de forma particular. Vale conferir!

domingo, 21 de dezembro de 2014

Boyhood ou sobre o momento que o elenco principal vira plateia


Boyhood ou sobre o momento que o elenco principal vira plateia
                                                                                                Por Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 
É curioso perceber o momento no qual as crianças, que vimos crescer, passam a protagonizar suas vidas de forma mais autônoma. É como se fizéssemos parte de um elenco principal ou da equipe de direção de uma produção que , de certa forma,  traça os caminhos e escolhe cenários para que as histórias das crianças aconteçam. Contudo, numa certa etapa da história, você, junto com todo o elenco principal, passa a servir apenas como elenco de apoio, pois as crianças viram jovens que já podem traçar e escolher os tais caminhos e cenários por onde querem que suas histórias aconteçam e, então, os principais jogadores do campeonato, viram torcida. Ë mesmo, uma mudança de perspectiva, muitas vezes, difícil de engolir, mas extremamente saborosa para quem não resiste a ela, a despeito da dificuldade.
Durante 12 anos, a equipe responsável pelo filme Boyhood (2014), sob a direção de Richard Linklater , se reuniu, anualmente, para gravar um filme que contaria a história do cotidiano de um menino americano. No roteiro, nenhum clímax, ponto central ou momento de virada. Isso não quer dizer que, no curso da narrativa, não acompanhemos mudanças de cidade,  estabelecimento e rompimento de laços afetivos e tudo mais que todo tecido de vida tem. Ë uma vida sendo vivida na tela, enquanto, fora dela, atores vão envelhecendo e hábitos culturais vão se alterando. Essa é a graça (ou a falta dela, na opinião de alguns) do filme cujo protagonista adora Harry Potter (personagem que também nos fez acompanhar o envelhecimento de todo um elenco, durante anos. Só que , nesse caso, com um filme por ano e com histórias fantásticas). Impossível para o espectador de Boyhood, em algum dos 166 minutos do filme, não se perguntar como vai acabar, já que não tem o que se resolver naquele roteiro, além da própria vida que vai se resolvendo, do jeito que dá, enquanto ela não acaba. E aí talvez esteja o ponto alto do filme e da ideia que o fez existir: o filme acaba quando a meninice de Mason acaba e ele tem (e quer) que seguir fazendo suas escolhas  de forma autônoma. Momento que novo elenco teria que ser contratado, para se continuar o filme, pois papéis sociais foram alterados.
O que mais me emocionou, contudo, não foi exatamente o filme, mas o que ele promoveu: fui assisti-lo por indicação de uma jovem, que nasce este ano como cineasta, e de quem acompanhei a meninice. Ela deixou uma mensagem de Whatsapp para mim, dizendo que eu não poderia deixar de assistir àquele filme tão delicado e que falava tanto de sua escolha pelo cinema. E eu, ao final do filme, entendi tudo: mais uma vez, meu ingresso na história passa para um lugar na plateia e isso, é delicado e belo, mesmo, Gabi! Boa sorte!

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Mapear para Existir


Mapear para Existir
Por Ana Lucia Gondim Bastos
O poema “Mapa” de Murilo Mendes, está entre os meus preferidos! Fala de uma cartografia muito particular: mapear sua história e referências, buscando contornos para as emoções, abrindo a possibilidade para, então, compartilha-las. Cartografia que não menospreza a complexidade da condição humana, por achata-la na bidimensionalidade, por saber-se sempre em transformação. É como uma fotografia que congela um momento e conta de um recorte de olhar, mas não aprisiona almas. Na 31a Bienal de arte, “Como (ler/pensar/lidar/conhecer) coisas que não existem”, num enorme paredão, Qiu Zhijie pintou, à mão, um mapa de terras que existem dentro e fora dele (e de nós), com uma delicadeza incrível! Terras e trilhas que contam do traçado constituído e constituinte da subjetividade de pessoas ou povos que passaram a existir naquele paredão, até o último dia de Bienal.  E é assim que o chinês nos ensina a como fazer com que terras, ilhas e trilhas passem a existir, para podermos falar sobre elas: Basta contorna-las, à mão!
Eis o Mapa de Murilo e de Qiu, sem dúvida grandes inspirações para quem quiser começar o seu!
“Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.

Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.

Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.

Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.

Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.

Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações…
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.

Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noites, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.Andarei no ar.

Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.

Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”…
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito…
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.

Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre
em transformação.”


terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Relatos Selvagens


RELATOS SELVAGENS
Por Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 

Em 1930, Freud publicou “O Mal estar na Civilização”. Dedicou um livro inteiro discutindo a inevitabilidade desse mal estar, preço pago para vivermos em sociedade, fruto da constante necessidade de lidarmos com nossas pulsões, em relações sociais de complexidade ímpar. Falamos em pulsões e não instintos, justamente, por estarmos tratando de uma particularidade humana, que faz com que as demandas pulsionais não tenham respostas idênticas, tais quais os instintos dos outros animais. 
Cada momento histórico oferece (im)possibilidades de tentarmos dar conta de tal equação de duas variáveis, quais sejam as demandas pulsionais e as demandas sociais. Contudo, vale ressaltar, é sempre uma equação bastante complicada e nem sempre bem sucedida.
Em 2014, Damián Szifron apresenta-nos, em breves relatos rodados com maestria e ótimos atores, momentos nos quais nos percebemos distantes das possibilidades de lidarmos com nossas feras utilizando recursos simbólicos, o pensamento ou a memória  (estes, também, de manifestações bem particulares, no gênero humano). Não acho que o filme “Relatos Selvagens” trate nosso momento histórico como um momento de especial selvageria, com cada vez menos espaço para o pensamento. Mas, sem dúvida, ao trazer a reflexão para mais próximo de nosso cotidiano, não nos deixa sair do cinema com a reconfortante sensação de “ainda bem que as coisas não são mais assim”! Como já podemos, porventura, ter saído de um filme baseado em textos de Victor Hugo (1802-1885), por exemplo.
Depois de um filme impactante desses é impossível não nos percebermos próximos a entrar num relato selvagem, cada vez que a única alternativa nos parecer se limitar a “explodir tudo”. E, como o pensamento, doutra sorte, é o que pode nos afastar de tais relatos (ou de experiências com relatos impossibilitados, pela própria ausência de abertura para o pensar), eis um filme indispensável!

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Interlocução Necessária: TOP 5 de personagens neuróticos para The Tramps


                                                           Interlocução Necessária
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 

 Marcelo Müller é crítico de cinema, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Estudante de jornalismo, escreve para o Papo de Cinema,o maior portal on-line do Sul do Brasil sobre cinema, além de assinar o blog The Tramps. A Coluna TOP 5 foi por ele idealizada como forma de incluir novas vozes em seu blog, inserir colaboradores e estabelecer uma interlocução necessária para não nos isolarmos em discursos circulares e estéreis. Adorei a ideia e o convite para participar escolhendo os TOP5 de personagens neuróticos. Devo confessar que foi um desafio, mas daqueles muito estimulantes! Obrigada, Marcelo, por tornar essa rede  espaço para novas possibilidades de bons encontros e trocas significativas!
 Aí vai minha seleção:

http://litcine.blogspot.com.br/2014/11/top5-personagens-neuroticos.html



terça-feira, 25 de novembro de 2014

No Limite do Amanhã


No Limite do Amanhã
Por Ana Lucia Gondim Bastos

Faz parte da condição humana a consciência de que teremos um amanhã como limite e de que viver é, inclusive, ter que dar conta dessa inevitabilidade. Não sabemos quando será, nem como será e essa indefinição nos deixa, por um lado, ainda mais vulneráveis, mas, por outro, podendo viver considerando que sempre teremos tempo pela frente. Ou seja, nos sabemos mortais, mas, ainda assim, fazemos planos e projetos como se não houvesse esse amanhã, limite para tudo. É um malabarismo necessário: a consciência das nossas limitações e a abertura para sonhar com futuros e para as experiências no mundo, sem deixar que tal consciência nos oprima a ponto de engessar tais possibilidades de sonho e de experiências. E já que a vida é esse incansável adiamento da morte, não podemos considerar ilegítima nossa, também incansável, busca por extrapolar os limites impostos, nesse caminho.
 O crescente desenvolvimento tecnológico e seus recursos mágicos, já nos permitem desafiar muitas leis da física e ter experiências, há pouco tempo, tidas como impossíveis a reles mortais. Contudo, poder estar interagindo em lugares diferentes ao mesmo tempo ou com pessoas que estejam geograficamente muito distantes, tanto pode ser um recurso interessante de ampliação das nossas possibilidades de interação e comunicação com o mundo, como pode atiçar nossa onipotência aplacando a dor de nos sabermos limitados, o que nos enfraquece, por nos deixar reféns da ilusória capa da fortaleza de quem tudo pode. Esta última vai nos deixando cada vez mais dependentes dos recursos que nos geram a saudosa sensação do narcisismo inabalável e vai nos afastando do mundo, ao invés de nos aproximar dele.
E o que falar dos games? Com eles podemos virar qualquer personagem, inventar características para nosso(s) avatar(es) e viver uma, duas ou várias vidas paralelas. De cara penso que poderia ser uma ampliação do mundo do faz de conta, das possibilidades de se projetar em outras realidades  e de contar novas histórias. Agora, então, que se pode jogar com pessoas de diversas partes do mundo, como se todos estivessem ao redor de um mesmo tabuleiro, mais legal ainda! Incrível alternativa para buscar novas estratégias e formas de enfrentar os desafios que o jogo oferece. Contudo, não podemos deixar de notar o alarmante uso dos games como mais um recurso de descarga rápida de energia, sem grandes elaborações acerca do que se está fazendo ou produzindo (no mundo interno ou externo) com as ações que tomam conta, às vezes, de várias horas do dia. Muito comum entre os adolescentes, mas não exclusividade deles, é a necessidade de voltar a jogar, colocando tal atividade como prioridade na vida. Em alguns casos, todas as outras atividades passam a ser encaradas como obrigações a serem cumpridas para, finalmente, se poder voltar a jogar. De frente para uma tela de computador, com movimentos repetitivos de dedos, uma pessoa pode passar dias e/ou madrugadas atirando em inimigos, caçando tesouros e acumulando pontos para ser mais poderoso na próxima jogada.
O filme “No Limite do Amanhã”(Doug Liman, 2014), traz para as telona uma vivencia que pode ser reveladora de um aspecto importante da atratividade, quase hipnótica, dos games. No filme de ficção científica, cujo cenário é a Terra durante um ataque alienígena que ameaça a humanidade, o Major William Cage (personagem de Tom Cruise) fica num loop temporal, condenado a voltar inúmeras vezes para o dia anterior ao de sua sua morte. Contudo, as repetições vão fazendo com que possa se preparar, cada vez melhor, para a batalha do dia seguinte, já que tem o poder de saber como será esse futuro (seu amanhã limite). É como num game no qual o jogador tem várias vidas e que vai se aperfeiçoando até que possa mudar de fase e, então, mudar a “realidade” da tela. Se algo deu errado ou se não foi astuto o suficiente para evitar algo desagradável, basta “deixar-se” morrer para que na nova vida se tenha chance corrigir o erro, numa repetição de quadro.
 Na vida fora dos games, no entanto, espaço no qual nosso corpo físico está em jogo (ou no jogo) e, por isso mesmo, estamos envolvidos “até o último fio de cabelo”, é preciso reconhecer erros e deslizes de outra forma. Precisamos ser capazes de reparar nossos erros e deslizes, buscar caminhos a partir dali, já que não dá para zerar o jogo e repetir o quadro. É preciso seguir daquele ponto, buscando novas telas ou cenários, contando com o que já foi como experiência e nunca como repetição, sem possibilidade de editar a história ou mudar de avatar! E disso só conseguimos dar conta num outro tipo de interação, tanto com o outro, quanto com a nossa própria narrativa.  Há algo de mórbido nessa repetição, que se configura numa narrativa que não flui.


domingo, 16 de novembro de 2014

Da Mariana Alcoforado às Marianas de todos os tempos


Da Mariana Alcoforado às Marianas de todos os tempos
                                    Por Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/

“À luz – ou à sombra – da nossa própria época, o que nos ocorre dizer, ao reviver o encontro de uma religiosa amante das letras e um militar que não chegou a aprender o idioma da sua amante?”
A partir desse questionamento, proveniente da imersão nas cartas de amor escritas por Mariana Alcoforado no século XVII, Betina Ruiz (escritora que hoje, reside em terras portuguesas), numa espécie de solilóquio, atualiza a dor da entrega a um amor que não pode ser mais vivido. Talvez, também, a dor de cartas que não seguiram com seu destino de correspondência, de manutenção do contato com o outro, esse outro destinatário de tanto amor.
“Mari” nos fala da importância de poder contar - e talvez até da esperança de que também Mariana Alcoforado pudesse contar – com o acolhimento de outras mulheres, “amigas para nos guiarem pelas mãos” , vozes que possam, em algum momento, nos dar força com palavras como: “Escapa, Mariana, dos círculos invisíveis que aprisionam”. É, assim, um delicado texto sobre o universo feminino e sobre resistência e luta (inclusive interna) pelo direito à vida, ao amor e à liberdade de viver o amor e uma vida inteira.
Por isso mesmo, a obra ganha ainda mais sentido e força, quando Betina convida a artista plástica portuguesa Filomena Bento para ilustrar e encontra, então, o diálogo necessário. Assim, Betina Ruiz e Filomena Bento vão encontrando tradução para os mil encontros, das sem número de Maris: Da Mariana Alcoforado às Marianas de todos os tempos, da Mariana Alcoforado à Mariana que vive dentro de cada uma de nós, da Mariana Alcoforado à todas as mulheres que contam histórias de amor e de luta contra segregação e contra as imposições de silenciar suas vozes e anular suas existências, seja na história da humanidade, seja em nossas trajetórias individuais. 
Como não puderam participar do lançamento brasileiro do resultado dessa co autoria, novos convites de parceria foram feitos: Betina (parte brasileira da produção) convidou mulheres que participaram de diferentes formas, em momentos diversos de sua história, para lerem trechos do livro: uma irmã, uma amiga das irmãs desde a época da adolescência, uma amiga de faculdade e uma amiga do início da vida profissional. Várias vozes, várias Maris, várias mulheres, várias histórias reunidas num mesmo texto... Bonito, mesmo, de ver e um privilégio participar!


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Frida y Diego


FRIDA Y DIEGO
Por Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 

Diz um ditado - já um tanto anacrônico, é verdade – “Por trás de um grande homem, existe sempre uma grande mulher!”. Era utilizado para enaltecer a mulher que, supostamente dava suporte, no âmbito da vida privada, para as grandes realizações de homens que se destacavam na vida pública. Atualmente, já ouvi, o mesmo ditado, dito invertendo as posições de gênero, o que não soa estranho, tendo em vista as muitas mudanças nas relações de gênero e em suas inserções sociais, seja no tocante à vida pública, seja à vida privada. É bem verdade que, hoje em dia, não soaria nada estranho se o mesmo ditado falasse sobre duas mulheres ou sobre dois homens, mas, a questão é: por que uma parte do casal precisaria estar à sombra da outra?
Frida y Diego (peça dirigida por Eduardo Figueiredo e escrita por Maria Adelaide Amaral, em cartaz no Teatro Raul Cortez, em São Paulo), traz esse questionamento à tona, em situações transcorridas entre 1929 e 1953, protagonizadas pelo casal cuja relação pareceu estar sempre “com sol a pino”, sem que a sombra de um recaísse sobre o outro, seja na perspectiva  pública, seja na perspectiva privada (apesar de, em momentos alternados, um  manifestar a sensação de menor que o outro). Obras e vidas de cores quentes, de militâncias aguerridas e sentimentos intensos! O encontro do caminho de Frida  com o de Diego (segundo ela um acidente tão impactante em sua história, quando o sofrido na juventude, consequência do qual passou muito tempo de cama recuperando-se das inúmeras cirurgias, muito tempo utilizando toda sorte de aparelhos ortopédicos  e todo o resto do tempo com dores atrozes), fez com que expusessem, em suas obras e em suas narrativas de vida, a força das transformações sociais, políticas e culturais pelas quais vinham passando toda a coletividade. Todos os conflitos e ambivalências, vividos por todos nós, até os dias de hoje e sobre os quais, só agora, sentimos poder começar a colocar palavras. Frida dizia não fazer parte do movimento surrealista, mas ter uma vida surrealista. Tudo era assim, nesse casal, vivido em carne viva e nervo exposto! Ora aumentando as feridas existenciais um do outro, ora cuidando e trazendo conforto, prosseguiram contando suas histórias interligadas. Mas, de todo modo, um mural de Diego não se confunde a um quadro de Frida, prosseguiram sendo dois sujeitos, dois grandes artistas com formas e cores próprias de falar sobre dores e ardores de uma vida vivida com sol a pino... Foi, sem dúvida, um grande encontro! Para nós, encontro que deixou um legado de referências que podem nos ajudar a nos entender melhor, a entender nossa história (sobretudo, nossa vivência latina americana), nossos sentimentos, nossas contradições e ambivalências. Tudo tão exagerado e tão verdadeiramente pulsante que nos ajuda, inclusive, a buscar em nós mesmos a força para seguir lutando por sonhos e amores que nos vinculem, tão fortemente, à vida, que nos façam enfrentar a presença, inevitável, da morte. Vale à pena conhecer Frida, vale à pena conhecer Diego, vale à pena conhecer Frida y Diego!

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A Força da Esperança e das Canções


A Força da Esperança e das Canções
Por Ana Lucia Gondim Bastos

As tramas criadas por Victor Hugo (1802-1885) para seus personagens, deixam sempre muito evidentes as dimensões históricas, sociais e psicológicas, que as sustentam. É, justamente, isso que os tornam extremamente consistentes. O Corcunda de Notre-Dame e Gwynplaine (criança que tem o rosto mutilado, no sorriso eterno do “O Homem que Ri”) são dois exemplos de personagens de Victor Hugo que engendram tais tramas e estimulam nossos sonhos (e pesadelos), nosso espírito crítico, a crença no nosso potencial de transformação (e de manutenção) de realidades e, também, por conta de tudo isso, alimentam nossas esperanças! “Os Miseráveis” é, sem dúvida, mais uma dessas delicadas (e ao mesmo tempo super pesadas) tramas de Victor Hugo. Seus personagens ora parecem completamente submetidos às determinações sociais, ora nos fazem acreditar na força da esperança e do amor. Nessa trama, contudo, tais forças são fomentadas, bem mais do que pelo amor cultivado nas relações interpessoais ou na felicidade presente em bons encontros e fortes abraços (como acontece na história de amor do corcunda e sua cigana ou de Gwynplaine e sua Déia), a ênfase recai, também,  no amor de cada um por sua gente e por todos aqueles que sofrem pelas injustiças e rótulos sociais. Traz a esperança fomentada pela força da união de muitas vozes cantando  pelos direitos humanos. Daí a pertinência maior de transformar tal trama em musical, no qual o canto de um encontra o canto do outro e, depois, do outro e do outro, até que um poderoso coro de resistência se estabeleça. É, justamente, o que acontece na versão cinematográfica dirigida por Tom Hooper (2012), que conta com elenco grandioso, responsável por memoráveis e premiadas interpretações.
Uma emocionante história cantada que me fez lembrar de certa feita ter recebido, de uma criança, um conto intitulado “A Floresta em cantada”. O encanto de uma história sonhada virou canção, para aquela menina que começara a explorar a escrita da língua portuguesa. Achei bonito! Uma imagem que me permitiu embarcar com ela numa viagem rumo a uma floresta que existe dentro dela e de todos que já foram embalados por canções que apaziguam a novidade da existência e estabelecem a esperança no futuro e no florescer de tudo que foi plantado com amor, durante a vida. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Se Perder para se Achar : notas sobre dois filmes de Sofia Coppola


Se Perder para se Achar :
notas sobre dois filmes de Sofia Coppola

Por Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 

Estar perdido na tradução, em espaços onde nada parece fazer muito sentido, ou pelo menos, onde os sentidos que foram atribuídos a cada coisa, até então, parecem perder a potência simbólica. Um momento de busca por códigos e signos cuja familiariadade favoreça o estabelecimento dos novos contornos necessários para que as  ideias e sentimentos suscitados por um novo lugar, um novo momento de vida ou uma nova experiência (ou tudo isso junto), tenham possibilidade de compreensão e compartilhamento.  São momentos (e lugares) de difícil acomodação e de considerável desconforto emocional,  nos quais a falta de contorno também é sentida no aspecto identitário. Num ambiente (situação/lugar ou experiência de vida) novo, no qual nos sentimos (ou efetivamente somos) estrangeiros, somos levados a uma redefinição de valores, de entendimentos e de formas de se tratar ideias, sentimentos e ações. Ou seja, somos levados a uma redefinição de nós mesmos e uma ressignificação da vida, com tudo o que ela comporta! Não é difícil imaginar que esse processo exija um exercício de instrospecção, bastante peculiar, para um reordenamento de nossos repertórios, de tudo o que já sabemos (sobre nós mesmos e sobre o mundo) e tudo o que já vivemos até aquele momento. Esses processos de ressignificação da vida e de nós mesmos - às vezes longos, às vezes dolorosos e sempre, em alguma medida, desconfortáveis – podem ser dificultados, quando a introspecção não é permitida e seu tempo de maturação não pode ser respeitado.  Hannah Arendt, certa vez atentou para a importância da preservação à super exposição, de tudo o que começa a se desenvolver. Para que o novo irrompa , necessita, antes, da segurança da escuridão para, então, orientar-se para a luz (como fazem as plantas, depois que brotam). A autora, referia-se, mesmo, à dificuldade de conciliar, por um lado, a necessidade desse espaço seguro e protegido e, por outro lado, os holofotes da fama. Esse entrelaçamento de temas – dos processos de auto (re)definições e dos assédios do estrelato - volta aos roteiros de Sofia Copola, em “Somewhere”(2010), depois de seu “Encontros e Desencontros” (Lost in Translation, 2003).
 São novas metáforas, novos personagens, novos encontros e desencontros, mas os dois roteiros várias vezes se tocam. Impossível não lembrar dos ajustes toscos do terno que o ator usaria durante a filmagem do comercial em Lost in Translation, quando o (também) ator famoso de Somewhere, desce da plataforma que faz com que as câmaras não mostrem que é mais baixo que a atriz com quem contracenou, no último Blockbuster de Hollywood. Também, a sensação de estranhamento do estrangeiro americano diante da excitação dos apresentadores de shows de auditório de países e línguas distantes, são comuns aos dois filmes (no primeiro japonês e no segundo, italiano). E, também, a dificuldade dessas celebridades falarem sobre si e a dificuldade de seus interlocutores de as ouvirem, por estarem diante de personagens sobre os quais se supõe tudo saber... Isso tudo, sem contar que , nos dois filmes, a trama se desenvolve em torno do encontro transformador com um interlocutor (nos dois roteiros representados por papéis femininos) que são capazes de refletí-los como pessoas perdidas que são/estão, sem projetarem-se maciçamente nos astros de Hollywoody que representam para todo o resto. Aliás, interpretações dignas de nota, no primeiro filme a vizinha de quarto de hotel (também perdida na tradução), interpretada por Scarlett Johansson e no segundo a filha adolescente, interpretada por Elle Fanning (A Bela Adormecida de Malevola).
Não é de se espantar que o primeiro filme tenha sido muito mais badalado e premiado, inclusive pela originalidade no tratamento do tema e consistência da trama, mas, o segundo nos devolve questionamentos importantes que, pelo jeito, Sofia Coppola ainda não sentira esgotado em seu Lost in Translation.  E quem de nós, como nos ensinou Freud, está livre de recordar, repetir para, então, elaborar?

referencias bibliográficas (a quem interessar): Arendt, Hannah – A Crise na Educação In Entre o Passado e o Futuro ;
Freud, S. - Recordar, Repetir e Elaborar (1914) In Obras Completas