domingo, 25 de janeiro de 2015

WHIPLASH


WHIPLASH
Por Ana Lucia Gondim Bastos
novo endereço do blog: https://tecendoatrama.wordpress.com/ 

A busca pela perfeição pode ser o outro lado de um relato selvagem. Somos humanos e, portanto, temos recursos para lidar com nossos impulsos e para dar a eles destinos diferentes ao que acontece na “natureza selvagem”. Sim, somos seres de cultura e, portanto, é impossível pensarmos nossa existência dissociada de nossa história e de nossos contornos sociais. Lembra-nos Hannah Arendt que, em latim, a expressão VIVER é a mesma da que comunica ESTAR ENTRE OS HOMENS (inter homines esse), assim como MORRER e DEIXAR DE ESTAR ENTRE OS HOMENS (inter hominies desinere), são sinônimos. Daí a riqueza de recursos para lidar com nossas constantes demandas internas e externas, riqueza em função da qual existe a possibilidade de não fazermos relatos selvagens de nossas narrativas de vida cotidiana (retomando a temática trazida por Damian Szifrón em sua última produção e discutida aqui no blog no dia 10/12/2014). Assim, ser humano é, também, ser capaz de produzir arte e ciência. É ser capaz de criar sempre novas formas de ampliação das possibilidades de expressarmos a dor e a delícia das nossas experiências no mundo e de ampliarmos, inclusive, as possibilidades de experiências que podemos ter. E foi assim que construímos engenhocas para voar, para nadar mais fundo ou até mais longe, para falarmos à qualquer distância, para ouvir a música que uma outra pessoa tocou num outro lugar, para congelar imagens de coisas e momentos belos e que nos trarão alegria ao rever, que inventamos histórias, plantamos flores e também árvores de sombra e frutos gostosos... ou seja,  que “pintamos e bordamos” nesse tempo que passamos por aqui. Enquanto isso, é claro, ensinamos para os jovens que continuarão aí, após nossa morte, a ouvir e, quem sabe tocar ou dançar, as músicas que nos fizeram sonhar, a como construir os lugares que hoje vivemos e tudo o que sabemos sobre o “pintar e bordar” atual, para que tais jovens sejam capazes de continuar, sempre transformando e ampliando, nossa arte de ser gente no mundo!
Mas, se tudo isso é verdade, uma verdade até que bem divertida, também é verdade que nossas engenhocas não são infalíveis, que nosso corpo não é incansável e que nossa possibilidade de controle sobre os fatos, atos e criações são limitadas. E, por isso, comecei esse texto com a afirmação de que viver a busca pela perfeição pode representar o outro lado da moeda de viver como se só tivéssemos a alternativa de narrativa, baseada nas reações impulsivas, instantâneas e impensadas que são a força motriz dos relatos selvagens. E como todo outro lado de uma mesma coisa, os dois acabam por resultar em relações e relatos de vida análogos.
Não costumo apreciar muito subtítulos escolhidos para traduções de nome de filmes americanos, mas, no caso de Whiplash (2014), “a busca pela perfeição”, caiu como uma luva! Desse filme, do jovem diretor Damien Chazelle, também saímos impactados (e exauridos) pela tensão constante que Terence Fletcher, regente da principal orquestra de jazz de um conservatório americano (papel executado, com maestria, por JK Simmons), estabelece com os músicos que estão sob sua batuta. Ele acredita em perfeição através da superação dos limites e, para isso, vale tudo: humilhação, violência física e todo tipo de autoritarismo, a que seus músicos acabam se submetendo pela suposta chance de despontarem  como um melhor do mundo. Num momento em que ser estrela parece ser sempre muito mais promissor do que ser constelação, não é de se espantar com a sedução que Fletcher exerça sobre os músicos em formação - ainda que o exemplo que utilize constantemente seja o de Charlie Parker, cujo fim foi precoce e trágico, apesar de nos ter deixado um legado genial com sua música.
O ponto alto do filme, a meu ver, é o encontro do jovem solitário e inseguro baterista, Andrew (personagem que, com certeza, marcará a carreira de Milles Teller), com o impiedoso Fletcher. O encontro dos anseios de ambos, de suas inseguranças, suas crenças (ou falta delas), um encontro de química explosiva que nos tira o fôlego e traz a (excelente, diga-se de passagem) trilha sonora para um outro lugar, para o lugar de personagem central e não apenas de pano de fundo. Vale à pena a experiência! Vale, também, pensar o que queremos levar ou deixar dessa/nessa nossa experiência de vida passageira! No meu caso, fico ainda a pensar: Por que os filmes dos diretores, nada veteranos, Damien e Demian tocaram tão fundo, tão mais fundo ou de uma forma tão diferente? Até agora, na minha opinião, as estatuetas de melhores filmes, deste ano, deveriam ir para eles.


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